segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Sobre JOHN LE CARRÉ (1931- ), in www.oribatejo.pt



















O Peregrino Secreto – por Beja Santos
by Bruno Oliveira on 13 de Fevereiro de 2013 em Blogue de Notas, Opinião
Share on facebookShare on twitterShare on emailShare on pinterest_shareMore Sharing Services0




Em 1989 é derrubado o Muro de Berlim, a Cortina de Ferro perdeu todo o sentido. O pensamento político ocidental teve que parar e refletir, desde os serviços secretos até ao funcionamento da NATO. Um mundo ficava para trás, múltiplas atividades perderam nexo. Uma delas, a espionagem, que tem uma corrente literária muitíssimo apreciada, via-se obrigada a repensar os objetivos e a ponderar o passado. É neste contexto que em 1991, o sumo-sacerdote da literatura baseada na espionagem, John le Carré, escreve uma obra-prima que reflete a espionagem e a vida dos espiões entre o pós guerra e a queda do Muro: “O Peregrino Secreto”, por John le Carré, Publicações Dom Quixote, 2012.
Ned, um agente leal e honesto do período da Guerra Fria, que fez parte dos serviços secretos britânicos durante toda a vida, tem a incumbência, no final da sua carreira, de formar uma nova geração de espiões. Na viagem de fim de curso, é arrastado para uma viagem sentimental através da sua própria vida, desde o recrutamento à iminente aposentação. O produto final é uma assombrosa série de episódios numa paleta de tons em que se pode registar a tragicomédia. O peregrino secreto é o fio condutor de todas essas histórias situadas entre o máximo de crispação até ao final desta titânica luta ideológica. George Smiley, por ventura o mais famoso personagem de John le Carré, é orador convidado deste jantar para abordar as questões que galvanizaram as vivências de todos os agentes secretos. No termo do jantar, Smiley diz à assistência que aquele mundo de que estivera a falar estava extinto, e descreve o ambiente: “O fulgor da fogueira a esmorecer iluminava a biblioteca almofadada, doirando-lhe as estantes com clareiras de poeirentos livros de viagens e aventuras, o velho e estalado couro das suas poltronas e as fotografias desbotadas dos seus desaparecidos batalhões de oficiais fardados com bengalas; e finalmente os nossos rostos sortidos, voltados para Smiley no seu trono de honra. Quatro gerações do Serviço recostavam-se ao longo da sala, mas a voz serena de Smiley e a névoa do fumo de charuto parecia unir-nos numa única família”. E com a mesma expressão dramática, a mesma expressividade com que fora contando histórias, sentenciou: “Acabou-se, eu também acabei. Está na altura de correrem o pano sobre o homem da Guerra Fria de ontem”. E à guisa de despedida: “Nunca dei um chavo pelas ideologias, a menos que fossem loucas ou perversas, nunca considerei as instituições dignas dos seus papéis, ou as políticas como muito mais que desculpas para a ausência de sentimentos. É com o homem, e não com as massas, que a nossa profissão tem que ver. Foi o homem que acabou com a Guerra Fria, caso não tenham reparado. Não foi o armamento, nem a tecnologia, nem os exércitos ou as campanhas. Foi apenas o homem. Nem sequer o homem ocidental, por acaso, mas o nosso inimigo jurado de Leste, que saiu para a rua, deu o corpo às balas e aos cassetetes e disse: estamos fartos”.
Histórias brilhantemente encadeadas nas outras, em que le Carré mistura novos personagens a heróis dos seus romances que correm o mundo inteiro: George Smiley, Toby Esterhase, Bill Haydon e Ned de A Casa da Rússia. Le Carré teve a magia de escrever livros em que os serviços secretos acabam por funcionar como local mais recôndito das nossas vidas comuns. Nos seus romances, os agentes secretos têm vida própria, são bem ou mal sucedidos no casamento, e Smiley lança-se a contar a história de Ben Cavendish que viu desmantelada a sua rede de agentes na Alemanha oriental e que depois fugiu, Ned lá o encontrou numa ilha britânica, acabou-se por descobrir que a rede fora denunciada pelo maior traidor dos serviços secretos britânicos. E Ned recorda, como num epílogo: “Regressei a Berlim não faz muito tempo, uma visita a Berlim é como regressar às origens. Numa tarde húmida, dei por mim postado junto ao sujo pedaço da vedação grandiosamente conhecido por Muro dos Desconhecidos, que era o monumento aos mortos ao tentar fugir nos anos 60 (…) Assaltou-me a nauseante ideia de que as pessoas ali à volta podiam estar à procura de um dos agentes de Bem que tivesse corrido precipitadamente para a liberdade à última hora e houvesse fracassado. E a ideia tornava-se tanto mais desconcertante quando eu refletia que já não eramos nós, os aliados ocidentais, mas a própria Alemanha oriental, que estava a lutar para apagar a sua existência”.
O rol de histórias é avassalador, conduz o leitor a uma entrega compulsiva: o aparecimento de pessoas que querem fazer denúncias, anunciam que traíram os seus serviços secretos, trazem revelações aparentemente sensacionais, formam-se novas redes, nunca se virá a apurar se essas redes foram desmascaradas por agentes duplos ou traidores dos próprios serviços secretos. As histórias são intercaladas com comentários de Smiley, não esquecer que é esse jantar fim de curso o fio condutor de toda a trama. A certa altura, ele devaneia: “Às vezes penso que a coisa mais vulgar que a Guerra Fria teve foi a maneira como nos habituámos a engolir a nossa própria propaganda. Na Guerra Fria, quando os nossos inimigos mentiam, faziam-no para esconder o mau estado do sistema. Ao passo que, quando eramos nós que mentíamos, escondíamos as nossas virtudes. Escondemos as próprias coisas que nos davam a razão. O nosso respeito pelo indivíduo, o nosso amor à diversidade e à discussão, a nossa crença de que só se pode governar justamente com o sentimento dos governados, a nossa capacidade de ver o ponto de vista dos outros – mais notoriamente nos países que explorámos, quase até à morte, para os nossos próprios fins. Na nossa suposta retidão ideológica, sacrificámos a compaixão ao grande deus da indiferença. Protegemos os fortes contra os fracos e aperfeiçoámos a arte da mentira pública”.
Não podia haver despedida mais nostálgica e pungente da Guerra Fria que a exposta nesta obra-prima em que le Carré não poupa críticas ao pensamento ocidental.
E como diz George Smiley: “A espionagem é eterna. Mesmo que os governos pudessem passar sem ela, nunca passariam”.

Sem comentários:

Enviar um comentário