terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

De Maria Gabriela Llansol..



Poema de Maria Gabriela LLansol (1931-2008), IN NET







Percorro o jardim,
ouvindo as suas vozes e antes que se eleve, de novo, o ladrar
dos cães.
O texto acompanha-me. Ousa escrever o que eu não ouso
acreditar


corpo de mulher e pernas de corsa onde o criar habita,
é essa a sua identidade?

deu-lhe um corpo humano,
não se contemplando com o corpo da vinha, da mirra, do incen-
so, do aloés;
o corpo humano é uma criação de dionísio, diz-me a rapariga
que temia a impostura,
e eu pergunto-lhe, escrevendo-me,

por que se perdeu a sua grande soberania?

Sento-me no chão do jardim, entre arbustos e canteiros sel-
vagens de flores,
derrrubada pela nostagia do feérico,
da magia das asas,
das partes transmudadas do corpo,
dos odores impregnantes que são ar e irrespiráveis,
do apelo da metanoite a um prazer inexcedível

por que nos tornámos?, pergunta-me o corpo, atraído por uma
força soberana de comunhão com o criado
do criar,
e o texto escreve-me, pela mão da rapariga que temia a impostura,
em busca da troca verdadeira.



in «Onde Vais, Drama-Poesia?», pgs. 120 - 121
'III Em Busca da troca Verdadeira (1982-1992)'
Lisboa, Relógio D'Água Editores

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