sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O capítulo VII de "Amor de Perdição" onde o romântico Camilo Castelo Branco se mostra já um verdadeiro Realista, na descrição do comportamento das freiras que acolheram Teresa

Amor de Perdição - Capítulo VII















O ferimento de Simão Botelho era melindroso de mais para obedecer prontamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aforismos de alveitaria. A bala passara-lhe de revés a porção muscular do braço esquerdo; mas algum vaso importante rompera, que não bastavam compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o académico deitou-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arrieiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto Simão Botelho.Mais do que as dores e o receio da amputação, o mortificava a ânsia de saber novas de Teresa. João da Cruz estava sempre de sobrerrolda, precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas dele. As pessoas que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois homens tinham aparecido mortos, e constava serem criados dum fidalgo de Castro Daire. Ninguém, porém, ouvira imputar o assassínio a determinadas pessoas.Na tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:«Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa gente. Eu não sei o que se passa, mas há coisa misteriosa que eu não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre viesse pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem tinha modo de lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse. Falou-me em criados mortos; mas eu não pude entender… Tua mana Rita está-me acenando por trás dos vidros do teu quarto…Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham aparecido mortos perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu aí estás; mas não me deram tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muito altos.Ó meu querido Simão, que será feito de ti?… Estarás tu ferido? Serei eu a causa da tua morte?Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios; vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação. Tem confiança nesta desgraçada, que é digna da tua dedicação… Chega a pobre: não quero demorá-la mais… Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu que não. Deus o queira.»Respondeu Simão a querer tranquilizar o ânimo de Teresa. Do seu ferimento falava tão de passagem, que dava a supor que nem o curativo era necessário. Prometia partir para Coimbra logo que o pudesse fazer sem receio de Teresa sofrer na sua ausência. Animava-a a chamá-lo, assim que as ameaças do convento passassem a ser realizadas.Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a devassa instaurada, respondeu que efectivamente os homens mortos eram seus criados, de quem ele e sua família se acompanhara de Castro Daire. Acrescentou que não sabia que eles tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra alguém as mais leves presunções.Os mais próximos vizinhos da localidade, onde os cadáveres tinham aparecido, apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro, pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas vizinhanças do local, fora chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar passo algum.Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora seu o alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas frequentes de Teresa, na noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum indício que pudesse envolvê-los no mistério daquelas duas mortes. Os criados não mereciam a pena dum desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão Botelho não podiam aduzi-las. Àquela hora o supunham eles a caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a esperança de que ele tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe preparar aposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que mediava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo Teresa, e solicitou a retenção temporária dela num convento de Viseu.Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho, que a mendiga lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pai entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço.– Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos – disse com severidade o velho.– Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite… – disse Teresa.– E a senhora sabe para onde vai?– Não sei… meu pai.– Então vista-se, e não me dê leis.– Mas, meu pai, atenda-me um momento.– Diga.– Se a sua ideia é obrigar-me a casar com meu primo…– E daí?– Decerto não caso; morro, e morro contente, mas não caso.– Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.– Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.– Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para a acompanharem.Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis escrever a Simão. Àquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo da Virgem, que ela fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e desse forças a Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe constância através dos trabalhos que sucedessem. Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o papel, e o macete das cartas de Simão. Saiu do seu quarto, relanceando os olhos lagrimosos para o painel da Virgem, e, encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar consigo aquela devota imagem.– Lá irá ter – respondeu ele. – Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria mais feliz do que há-de ser.Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte, e segredou-lhe:– Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta casa…– Qual remédio?! – perguntou Teresa com artificial seriedade.– Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar.– O primo Baltasar não me quer – replicou ela sorrindo.– Quem te disse isso, Teresinha?– Disse-mo o meu pai.– Deixa falar teu pai, que está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu lhe fale?– Para quê?– Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.– Estás a brincar, prima! – redarguiu Teresa. – Eu hei-de ser tua cunhada quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por ele, abençoarei todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar, e diz-lho antes que te esqueça.– Então, vamos?! – disse o velho.– Estou pronta, meu pai.Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou a mão de seu pai, que ele não ousou recusar-lhe na presença das freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:– Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra «coração» uma heresia, uma blasfémia proferida na casa do Senhor.– Que diz a menina?! – perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos óculos, e apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.– Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.– Não diga minha senhora – atalhou a escrivã.– Como hei-de dizer?– Diga «nossa madre prioresa».– Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito bem.– Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem – tornou a nossa madre prioresa.– Não?! – disse Teresa com sincera admiração.– Quem para aqui vem, menina, há-de mortificar o espírito, e deixar lá fora as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem compete encaminhá-la e dirigi-la.Teresa não redarguiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou outro.– Que importa que seja um ou outro? – disse Teresa.– É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou bernardas.– Professe! – exclamou Teresa. – Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte.– A senhora há-de ser o que seu pai quiser que seja.– Freira!? A isto não pode ninguém obrigar-me! – recalcitrou Teresa.– Isso assim é – retorquiu a prioresa –, mas, como a menina tem de noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para a alma.– Mas a nossa madre – tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual – já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem…– É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem-disposto. Ora vê aí. Mas em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vivemos umas com as outras, como Deus com os anjos. O que uma quer, querem todas. Más-línguas é coisa que a menina não há-de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina e volto já. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas casas.Apenas a prioresa voltou costas, disse a organista à mestra de noviças:– Que impostora!– E que estúpida! – acudiu a outra. – A menina não se fie nesta trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver, que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula, porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no dizer da madre prioresa.Pouco depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas freiras.– Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? – disse ela a Teresa.– Pareceram-me muito bem.A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho líquido, e regougou:– Hum!… está feito, está feito!… Ainda não são das piores; mas, se fossem melhores, não se perdia nada… Ora vamos a isto, menina; aqui tem duas pernas de galinha, e um caldo que o podem comer os anjos.– Eu não como nada, minha senhora – disse Teresa.– Ora essa! não come nada!? Há-de comer; sem comer ninguém resiste. Paixões... que as leve o porco-sujo!… As mulheres é que ficam logradas, e eles não têm que perder!… Que eu, cá de mim, até ao presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas quem tem cinquenta e cinco anos de convento tem muita experiência do que vê penar às outras doidivanas. E, para não ir mais longe, estas duas que daqui saíram têm pagado bem o seu tributo à asneira, Deus me perdoe se peco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de noviças à falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o olho em cima, estragava-me as raparigas.Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha, palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas as noites era brindada.– Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a mestra – disse a prioresa.– Oh! são para o que eu lhe prestar! Lá foram ambas para a cela da porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquelas línguas, que não perdoam a ninguém.– Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? – disse a prelada.A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos dormitórios até parar a uma porta que não vedava o ruído estridente das risadas.No entanto, dizia a prelada a Teresa:– Esta escrivã não é má rapariga: só tem o defeito de se tomar da pingoleta; depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem ocasiões de entrar no coro a fazer ss, que é mesmo uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga. É verdade que, às vezes… (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos dormitórios, e fechou por dentro a porta) é verdade que, às vezes, quando anda azoratada, dá por paus e por pedras e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já ela me assacou um aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a ares, e andava por lá a fazer o que fazem as outras. Forte pouca-vergonha! Lá que outra falasse, vá; mas ela, que tem sempre uns namorados pandilhas que bebem com ela na grade, isso lá me custa; mas, enfim, não há ninguém perfeito!… Boa rapariga é ela… se não fosse aquele maldito vício…Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia ao coro, e pouco se demoraria. Tinha ela saído, quando a escrivã entrou a tempo que Teresa, com as mãos abertas sobre a face, dizia em si: «Um convento, meu Deus! Isto é que é um convento?!»– Está sozinha? – disse a escrivã.– Estou, minha senhora.– Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspede sozinha? Bem se vê que é filha de funileiro!… Pois tinha tempo de ter prática do mundo, que tem andado por lá que farte…Eu havia de ir ao coro; mas não vou, para lhe fazer companhia, menina.– Vá, vá, minha senhora, que eu fico bem sozinha – disse Teresa, com esperança de poder desafogar em lágrimas a sua aflição.– Não vou, não!… A menina aqui estarrecia de medo; mas a prelada não tarda aí. Ela, se pode escapar-se do coro, não pára lá muito tempo. Ia apostar que ela lhe esteve a falar mal de mim?– Não, minha senhora, pelo contrário…– Ora diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não fala bem de ninguém. Para ela tudo são libertinas e bêbedas.– Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma freira.– E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja viva. Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados como de amantes ela tem tido! Faz lá uma pequena ideia, menina!…A escrivã bebeu um cálice de vinho da sua prelada e continuou:– Faz lá uma pequena ideia! Ela é velhíssima como a sé. Quando eu professei já ela era velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou freira há vinte e seis anos; calcule a menina quantas arrobas de esturrinho ela tem atulhado naqueles narizes! Pois olhe, quer me creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão, que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira, à nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho imensa pena de ver a menina hospedada em casa desta hipócrita. Não se deixe levar das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que seu pai lhe mandou falar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas olhe, minha filha, se quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias e o meu quarto, se para lá quiser ir escrever. Se tem alguém que lhe escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu chamo-me Dionísia da Imaculada Conceição.– Muito agradecida, minha senhora – disse Teresa, animada pelo oferecimento. – Quem me dera poder mandar um recado a uma pobre que mora no beco do…– O que quiser, menina. Eu mando lá logo que for dia. Esteja descansada. Não se fie de alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a organista são duas falsas. Não lhes dê trela, que, se as admite à sua confiança, está perdida. Aí vem a lesma… Falemos noutra coisa…A prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:– Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento, quando se tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa… Ai! eras tu, menina? Olha se estivéssemos a falar mal de ti!– Eu sei que tu nunca falas mal de mim – disse a prelada, piscando o olho a Teresa. – Aí está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer das tuas boas qualidades…– Pois o que eu disse de ti – respondeu sóror Dionísia da Imaculada Conceição – não precisas de perguntar, porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer o mesmo das outras que desonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado numa meada, que é mesmo coisa de pecado!– Então não vais ao coro, Nini? – tornou a prioresa.– Já agora é tarde… Tu absolves-me da falta, sim?– Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um copinho…– Do estomacal?– Pudera!…Dionísia cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela, deixar a prelada na sua hora de oração.Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos, enquanto se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de Monchique.Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira falar dos mosteiros como de um refúgio da virtude, da inocência e das esperanças imorredoiras. Algumas cartas lera de sua tia, prelada em Monchique, e por elas formara conceito do que devia ser uma santa. Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer às velhas e devotas fidalgas de Viseu virtudes, maravilhas de caridade, e até milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de fugir dali!A cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alcova separada, com cortinas de cassa.Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe a menina se poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que no dia seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua filha não escrevesse; assim mesmo, ajuntou ela que lho não proibiria, se tivesse tinteiro e papel na cela.Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa a meia-voz. Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não teria ela muita razão de queixa, porque a devota monja, ao segundo padre-nosso, cabeceava de modo que já não atinou com a primeira ave-maria. Levantou-se cambaleando uma mesura às imagens do santuário, foi deitar-se, e pegou a ressonar.Teresa afastou subtilmente as cortinas do quarto, e tirou de entre o seu fato o tinteiro de tarraxa e o papel.A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira, em que Teresa pusera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lhe miudamente os sucessos daquele dia. A carta rematava assim:«Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo ao que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projectos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que meu pai tome dir-ta-ei logo, podendo, ou quando puder.A falta das minhas notícias deves atribuí-la sempre ao impossível. Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como isto é triste, meu querido amigo!… Adeus.»

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