HISTÓRIAS DE AGOSTO
Torre do tombo: uma fortaleza da memória
por Pedro Sousa TavaresHojeComentar
Silvestre Lacerda, diretor da Torre do Tombo, de “guarda” a um dos cofres fortes. Algumas bulas papais têm selos de ouro maciçoFotografia © Diana Quintela / Global Imagens
No Arquivo Nacional há cem quilómetros de documentos. Registos, muitas vezes na primeira pessoa, de alguns dos momentos mais marcantes da história do país, muitos deles classificados Património da Humanidade pela UNESCO. A internet abriu definitivamente a todo o mundo um edifício que se afasta cada vez mais do rótulo de secretismo.
"Por onde querem começar"? A pergunta de Silvestre Lacerda, diretor do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, é perfeitamente razoável. Mas não deixa de causar um terror imediato. Por onde se começa numa fortaleza de 55 mil metros quadrados que guarda mais de cem quilómetros de documentos?
Naquele edifício está guardado um extenso e sistemático registo da memória de Portugal, mesmo antes de o país existir. O mais antigo, de 882, é um documento do Mosteiro de Sete, relativo aos privilégios atribuídos à igreja de Lordosa, hoje pertencente a Penafiel. É ali mantida, claro, a bula Manifestis probatum, de 1179, através da qual o Papa Alexandre III reconheceu a independência do Condado Portucalense e a soberania de D. Afonso Henriques sobre o novo reino.
Nos cofres-fortes há outras bulas importantes. Nomeadamente as chamadas bulas áureas, por serem seladas em ouro maciço: "Convém não dizer isto muitas vezes, senão as finanças julgam que resolvemos os problemas da dívida", brinca o historiador, "mas temos lá alguns documentos com essas características, incluindo os que respeitam à canonização da rainha Santa Isabel e à criação do Patriarcado de Lisboa".
Outras preciosidades incluem um enorme conjunto de documentos de origens diversas, intitulado "Corpo Cronológico" e reconhecido pela UNESCO como "Memória do Mundo". Representam um período entre os séculos XII e XVI onde está contada, muitas vezes na primeira pessoa, boa parte da mais esplendorosa etapa da história de Portugal: "A carta de Pêro Vaz de Caminha, os tratados celebrados entre Portugal e vários reinos."
E não podemos esquecer os Registos de Chancelaria - os antecessores do atual Diário da República -, que datam do século XII e se prolongam até à queda da monarquia. Ou a coleção Leitura Nova - "uma espécie de reforma da administração pública feita pelo rei D. Manuel" ou o Liber Testamentorium, "o códice português mais antigo".
Arquivo organiza exposições temporárias com documentos marcantesFotografia © Diana Quintela / Global Imagens
Numa coleção de dimensão quase incomensurável, enumerar todos os documentos imprescindíveis seria tarefa para várias horas. E há que começar a visita. O primeiro ponto de paragem é uma desilusão: uma sala ocupada por enormes máquinas, com luzes brilhantes e fios espalhados por todo o lado. Estão ali os servidores. E há uma explicação para uma escolha aparentemente tão pouco glamorosa: é a partir daquele cubículo que a Torre do Tombo se está a abrir ao mundo inteiro.
Uma sala de leitura global
"Estamos neste momento com 0,1% do nosso arquivo em digital, que corresponde apenas a 16 milhões de imagens disponíveis na web e a 220 terabytes de informação disponível", refere Silvestre Lacerda, com a modéstia de quem fala de um projeto que ainda dá os primeiros passos. Mesmo que esses passos sejam também eles de uma dimensão quase difícil de processar.
A título de exemplo, a Wikipédia, em 2011, contabilizava cerca de 11 milhões de registos em todas as suas versões linguísticas. Ou seja: era cerca de 50% menor do que o atual catálogo digitalizado da Torre do Tombo. Mas este representa apenas 100 metros dos 100 quilómetros do total do Arquivo.
A planta de uns Jogos Olímpicos que Salazar não realizouFotografia © Diana Quintela / Global Imagens
O certo é que esta foi a distância necessária para começar a afastar em definitivo a ideia de que a Torre do Tombo é um espaço reservado e secretista. "Às vezes as pessoas acham que isto é uma casa muito fechada, uma coisa horrível, guardada para umas pessoas muito especiais. Não. A casa está aberta", garante o historiador.
A sala de leitura presencial tem cerca de 15 mil utilizadores por ano. "Com a disponibilização online temos o equivalente a 60 anos desses visitantes, 900 utilizadores por dia. Utilizadores da Austrália, do Brasil, de África, Índia e, claro, da Europa, desde Inglaterra à Alemanha", enumera o historiador. "Os visitantes estão em média seis minutos presentes no site, o que significa que há pesquisa e que as pessoas estão a fazer download de ficheiros, porque existe essa possibilidade de descarregar as imagens."
Reconstituir a história
Digitalizar todo o espólio seria uma tarefa de décadas, cara e redundante, porque não faltam os documentos repetidos. A prioridade tem sido baseada em três critérios: documentos mais pedidos pelos utilizadores, documentos que fazem parte da identidade e memória histórica do país e documentos em maior estado de degradação, que têm de ser preservados.
O Arquivo tem 169 trabalhadoresFotografia © Diana Quintela / Global Imagens
Na sala de restauro, onde trabalham seis dos 169 trabalhadores da Torre, deparamos com um ambiente laboratorial, com várias técnicas, de bata branca, debruçadas sobre preciosos pergaminhos centenários. Silvestre Lacerda observa, curioso, um puzzle de pequenos fragmentos de papel que está a ser reconstituído. Um documento do Cabido da Sé de Lamego. Também há documentos mais mundanos, registos de paróquias, recuperados antes de serem copiados para dar resposta a pedidos de clientes.
Ana Ribeiro, responsável pelo departamento de Conservação, Restauro e Transferência de Suporte, aponta para uma folha restaurada. "É um pedido da Austrália. Um senhor que queria identificar alguns antepassados, para efeitos da obtenção da nacionalidade", explica. "Depois de recebermos o pedido, localizámos o documento, mas o seu estado de conservação não permitia que fosse digitalizado de imediato. São estas coisas que por vezes os nossos clientes não entendem", acrescenta. O processo pode levar algum tempo, porque nem sempre os originais estão em boas condições.
Muitos dos documentos do Arquivo, explica Silvestre Lacerda, têm funções que vão para lá do mero interesse histórico: "Temos documentação que ainda hoje serve de prova em tribunal: registos de batismo, casamento e óbito para a obtenção da nacionalidade, registos notariais para a propriedade pública marítima. São documentos vivos, ativos."
Quanto aos tesouros do Arquivo, o verdadeiro segredo é que não são assim tão escondidos. São exibidos, em mostras temáticas, na zona de exposições. Neste ano, tem estado em destaque o tema da pena de morte, com documentos que vão desde os processos de criminosos célebres, como Diogo Alves, aos documentos de abolição.
Coleção está sempre a aumentar e tem de ser preservadaFotografia © Diana Quintela / Global Imagens
Novos temas por explorar não faltam. Até porque, nos bastidores, há sempre uma surpresa a revelar ao público. É o caso de um grande mapa de uma aldeia olímpica, projetada em 1934 pelo arquiteto Jorge Segurado (autor da Casa da Moeda). Projeto com o qual Salazar queria candidatar Portugal aos Jogos Olímpicos de 1940, que a Segunda Guerra Mundial anulou.
Inquisição e PIDE no top dos pedidos de pesquisa
Poderá parecer estranho que, entre um espólio que documenta em pormenor alguns dos mais fascinantes momentos da história de Portugal, do nascimento do país à época dos Descobrimentos, alguns dos registos mais consultados tenham origem em duas instituições que não ficaram exatamente na memória coletiva pelos melhores motivos: a Inquisição e a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE).
A explicação, segundo Silvestre Lacerda, diretor do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não está num qualquer fenómeno coletivo de curiosidade mórbida e sim em questões práticas, relacionadas com a confirmação de laços de parentesco com antepassados e até para a caracterização da população da época em geral.
São dos mais pesquisados também porque são os mais ricos do ponto de vista da descrição individual", explica o historiador. "Os registos da Inquisição são muito utilizados do ponto de vista das habilitações de género, da genealogia, por pessoas que pretendem informações sobre os seus antepassados ou outras pessoas e empresas que fazem essas pesquisas em nome de terceiros", ilustra. "Muitos desses documentos respeitam à chamada "limpeza de sangue", para as pessoas provarem que não eram judeus nem tinham antepassados judeus até três gerações."
No caso dos arquivos policiais, existe "a curiosidade sobre o tipo de informação que existe". Mas os pedidos não se prendem apenas "com informação de carácter político. Também há muita informação biográfica. No caso dos homens, por causa do serviço militar, todos os que se quisessem ausentar do país tinham de pedir autorização à polícia e ficava um registo. Tal como sucedia em relação a quem era alojado num bairro social e a todos os funcionários públicos".
O Arquivo Nacional cumpre a legislação sobre a preservação de dados relativos a informação pessoal, como os registos clínicos e outros dados que possam pôr em causa o bom nome. Até 50 anos após a morte, os dados só são fornecidos a familiares e - de forma condicionada - a investigadores.
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