quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Através do amigo Manuel Torres Silva, um artigo de Raquel Cardeira Varela, in Wordpress




«Jump, you fuckers!»: a queda mundial das bolsas
Posted on August 25, 2015


Enquanto em 2008 o diretor de uma grande empresa alemã aconselhava os seus quadros a lerem O Capital de Karl Marx, as televisões de todo o mundo procuravam encontrar na febre – queda das bolsas – as causas da doença – queda da taxa de lucro na produção industrial mundial e sobretudo norte-americana -, insistindo que a maior crise do capitalismo do pós-guerra era um problema de homens maus ao leme de um sistema bom.


George W. Bush disse, literal e assumidamente, em 2008, olhos nos olhos dos seus concidadãos, que se não autorizasse os triliões de ajudas à General Motors ou ao Bank of America, as maiores empresas da maior economia do mundo teriam falido e arrastado o capitalismo mundial para uma grande depressão. Estes valores, conhecidos como os «helicópteros de dinheiro» que Ben Bernanke, presidente da Reserva Federal norte-americana, sistema de bancos centrais dos EUA, despejava em cima de Wall Street (bolsas de Nova Iorque), serão adiantados pelo Estado e depois pagos com o dinhei- ro dos contribuintes — isto é, com uma queda real do salário de 25% nos EUA desde 2008. Apesar de algumas manifestações empunharem então cartazes à porta de Wall Street em que se lia «Jump, you fuckers!» — aludindo aos suicídios de acionistas em 1929 —, estes, desta vez, não saltaram. E o capitalismo norte-americano foi salvo não porque era um sistema robusto, mas porque foram usadas as maiores ajudas públicas de toda a história da humanidade.


Os ciclos económicos da produção capitalista, descritos em O Capital de Marx, que ocorriam no século XIX sensivelmente a cada dez anos e hoje a cada sete anos (estão cartografados pelo Departamento de Comércio norte-americano), têm um ciclo de vida que podemos descrever assim: período de crise, expansão, pico de acumulação, crise… A origem das crises cíclicas é a desvalorização da propriedade por aumento do capital constante (investimentos, máquinas, tecnologia, etc.) perante o capital variável (salários). No modo de produção capitalista, as crises são de superprodução de capital e não de escassez, como na Idade Média. Quando o custo do trabalho, a única origem do valor, sobe em relação ao capital constante, há uma crescente desvalorização da propriedade, cai a taxa média de lucro. É a crise.


Normalmente no final do ciclo, antes de se entrar em crise (ou seja, antes de se dar uma queda na taxa de lucro, deflação de preços na produção, etc., que muitas vezes se manifesta com quedas nas bolsas), há uma alta taxa de empregabilidade da mão de obra ou do custo unitário do trabalho. Nesta crise, o desemprego atingiu níveis estruturais e inéditos, o que significa que o grau de desvalorização dos capitais — e a necessidade de acionar medidas contracíclicas mais devastadoras — foi desta vez muito superior. Esta- mos em cima de um vulcão. Estamos, do ponto de vista da produção capitalista, numa bifurcação histórica.

Nos EUA, ao contrário do que é erradamente referido nos manuais, as taxas de desemprego de 1929 só foram revertidas quando o país entrou na guerra, em 1941. Foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, forças produtivas em fábricas de máquinas de destruição, que reverteu a crise de acumulação.

A crise não afeta os trabalhadores no seu primeiro momento. Pelo contrário, há queda de preços, como se verificou em Portugal em 2008. O que acontece é que as medidas para «sair da crise», para repor a taxa média de lucro, assentam na destruição de riqueza, no deitar produtos fora para manter o preço, ou como em 1929, na queima de café nas locomotivas para não entrar café no mercado e fazer descer os preços. Para manter as taxas de lucro é necessário sabotar a economia, destruir produção e riqueza e provocar milhões de desempregados e miseráveis. O que vulgarmente se chama na televisão «descer o custo unitário do trabalho» tem como contrapartida, nunca explicitada, «aumentar a rentabilidade do capital investido». São duas faces da mesma moeda. Pedro Ramos, antigo diretor do departamento de contas nacionais do Instituto Nacional de Estatística, fez os cálculos e apurou que o peso do trabalho por conta de outrem e por conta própria desceu de «53,2% do produto interno bruto em 2007 para 52,2% em 2013 […]. O fator trabalho perdeu 3,6 mil milhões de euros. O excedente do capital engordou 2,6 mil milhões de euros».


Um dos significados da palavra crise é «conjuntura ou momento perigoso, difícil ou decisivo». Por outro lado, crise aparece como «oportunidade». As definições adequam-se ao uso que toda a sociedade tem feito desta palavra no que diz respeito aos acontecimentos de 2008.

O que há de perigoso, difícil ou decisivo para os que vivem do seu trabalho? Como toda a crise cíclica que ocorre no sistema capitalista desde o início do século XIX (este tipo de crise é um exclusivo do capitalismo, uma vez que as crises pré-capitalistas eram crises de escassez, de penúria, pro- vocadas por maus anos agrícolas, guerras, etc.), esta mani- festa-se em primeiro lugar por uma superprodução de capital. Uma expressão disso mesmo seriam as bolhas, mas num nível mais profundo temos, por exemplo, a quantidade física de casas produzidas muito além do necessário, com preços muito acima do razoável. Observa-se, igualmente, um aumento no custo unitário do trabalho, muito em particular nos EUA, que são o motor do sistema, e fazem que a crise seja globalizada. Olhando por outro ângulo, vemos uma deflação (queda do valor) tanto no preço da propriedade como dos bens. Ora tudo isto é, para um trabalhador, o melhor que poderia acontecer: queda dos preços.


O mesmo não é possível dizer para os bancos e a indústria (seja de bens ou de serviços) que dependem dos preços dessas propriedades para garantir os juros, dividendos ou rendas que remuneram os capitais aí investidos. Por isso, estes reagem à crise com medidas contracíclicas, que visam reverter o ciclo de queda do lucro. Os bancos centrais cortam a taxa de juro para criar liquidez, as empresas despedem ou fecham para estancar a queda do lucro (deitam laranjas fora para evitar vendê-las a um preço abaixo da taxa média de lucro, para usar a imagem de 1929) e os governos despejam os seus helicópteros cheios de dinheiro na banca e na indús- tria para trocar os ativos desvalorizados por outros valorizados, ou seja, reformas, salários, empresas públicas. Troca-se riqueza real — salários e bens públicos — por papéis desva- lorizados. É precisamente nesse movimento de combate à crise de valorização do capital que começa a crise de (des)valorização dos salários. É importante compreender que não se trata de uma mesma crise, não estamos todos no mesmo lugar do barco — há gente no porão, a maioria, alguns no convés e outros ao leme.




https:// raquelcardeiravarela.wordprees.com

Excerto do meu livro Para onde vai Portugal? (Lisboa, Bertrand, 2015)

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