segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

In "Café Central", Grupo de opinião

25/01/2016

Nuno Ramos de Almeida
nuno.almeida@ionline.pt

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Elogio da intolerância

Where climbing was and bright/ is darkness and to fall/ (now wrong’s the only right/since brave are cowards all). E. E. Cummings

Na obra-mestra de David Fincher, “The Fight Club”, há uma cena-chave em que Tyler (Brad Pitt) quer acordar para a vida Jack (Edward Norton) queimando-o com ácido, enquanto lhe diz, agarrando-o: “Este é o maior momento da tua vida e tu não estás cá, vais perdê--lo.” Para Jack, a violência é divina, usando o conceito de Walter Benjamin, quando nos permite descobrir o nosso corpo e realidade pela dor, despertando-nos de um mundo anestesiado onde vivemos. Um mundo em que somos espetadores de sofá e interagimos com cliques, nos meandros de um qualquer ato de consumo.

O “projeto destruição” descrito no filme, esta irrupção aparentemente anárquica de toda a violência permite um renascer nas ruínas da desordem. A destruição de todos os arquivos financeiros, centros de poder fácticos, seria esse novo big bang.

A história mostra-nos, desde o início dos tempos, como a violência é uma dinâmica imanente às grandes ruturas. É quase sempre pela violência que o gesto revolucionário lança as sementes de algo novo, de uma nova ordem.

A própria constituição do político como escolha e alternativa está ligada a esta definição de inimigo. Não há ato político sem esse gesto.

O mundo em que vivemos castrou--nos as escolhas, fazendo substituir a ideia de conflito pela ideia da “tolerância”.

“Há muito tempo, Friedrich Nietzsche percebeu que a civilização ocidental estava a caminhar em direção ao Último Homem, uma criatura apática sem grandes paixões nem compromissos. Incapaz de sonhar, cansado de viver, esse homem não corre riscos, procurando apenas o conforto e segurança”, escreve o filósofo Slavoj Zizek.

A “tolerância” mascara o conflito social e minimiza a luta na conquista dos próprios direitos. Se disséssemos em 1 de Dezembro de 1955 a Rosa Parks, a mulher que na cidade de Montgomery se recusou a dar o lugar do autocarro a um branco, como mandavam as regras da segregação, que ela procurava “tolerância”, ter-nos-ia mandado bugiar. O seu gesto, que lhe custou a prisão, provocando um conflito onde só havia sujeição, era a afirmação de um direito, não de tolerância. “Estou cansada de ser tratada como uma pessoa de segunda classe”, disse ela ao condutor.

Vivemos num mundo dividido em condomínios privados e subúrbios tendencialmente selvagens. São assim as grandes cidades; é assim a divisão entre um espaço organizado, envelhecido, do Primeiro Mundo, e o espaço falhado e desordenado dos países educados à bomba. Nos espaços marginais contidos pela violência do Estado ou dos exércitos apenas parecem campear os bandidos e os fundamentalistas. Como se lê no “Segundo Advento” de William Butler Yeats, “aos melhores falta convicção e aos piores sobeja apaixonada intensidade”.

Esta oposição entre bombardeamentos e fundamentalistas que se alimentam reciprocamente é incapaz de ultrapassar a divisão entre espaços crescentemente desiguais: de um lado, os espaços civilizados, vigiados, e por outro lado os espaços selvagens, onde sobreviverá um número crescente de humanos em condições sub-humanas. A sua dinâmica pressupõe essa divisão e justifica-se com ela.

Só uma nova violência ligada a um projeto intolerante com as desigualdades, e com a capacidade de constituir um novo conflito e fabricar uma nova hegemonia, terá a capacidade de evitar esta corrida para a catástrofe.

Estamos num momento de transição. O mundo que vivemos não tem condições e não conseguimos ver as alternativas possíveis. Uma coisa é certa: elas não são possíveis sem uma ideia de intolerância à desigualdade e possibilidade de ação violenta. A violência é o gesto que nos permite mostrar a injustiça de uma situação.

Numa das tragédias clássicas do teatro grego, de Sófocles, Antígona opõe-se às leis da cidade que a impedem de enterrar o irmão, que combateu pelas tropas inimigas. Para ela, as leis da cidade não estão acima do dever. À medida que se desenrola a tragédia, o tirano Creonte vai tentando quebrar a jovem e obrigá-la a cumprir a sua lei, sem o conseguir. A recusa de Antígona custa-lhe a vida, mas o seu sofrimento vai derrubar a tirania, mostrando a irracionalidade de um poder repressivo que até ali estava disfarçado na vida de todos os dias. Há milhares de anos, como agora, a liberdade vale mais que os repressores de turno. Basta um gesto para o perceber.

Ao contrário dos contos de fadas ou dos filmes em que se come pipocas, nada obriga a que depois de uma tragédia haja um final feliz. Mas na nossa liberdade está inscrita a possibilidade de mudar as coisas. Por vezes, basta um gesto corajoso.

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