"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Através de cvc.institutocamoes,pt-O escritor português Raúl Brandão
RAUL BRANDÃO
Raul Brandão, por Vítor Viçoso
Nascido na Foz do Douro (Porto), em 1867, Raul Brandão, filho e neto de pescadores, morreria em Lisboa em 1930. A partir de 1912, já reformado no posto de capitão do exército, onde ingressara em 1888, alternaria entre a sua “Casa do Alto”, na Nespereira (Guimarães), e Lisboa, onde passava parte do inverno.
Elemento ativo da “geração de 90” (século XIX), influenciada pela estética decadentista-simbolista de matriz parisiense, Raul Brandão, superado o período do “nefelibatismo” – seria um dos elementos do cenáculo portuense responsável pela elaboração do opúsculo “Os Nefelibatas” (1892), simultaneamente manifesto em prol da arte moderna e pastiche decadentista –, do esteticismo e do ludismo decadente e libertário que comungara com os seus companheiros geracionais (António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, entre outros), foi desenvolvendo, num clima visionário, uma perspetiva crítica relativamente aos valores materialistas burgueses dominantes na sociedade do seu tempo. Da fase da originalidade “nefelibata” e do artificialismo “dândi”, enquanto estilo geracional, o autor transitaria para uma fase de uma obsessiva responsabilização ética e aí fundaria a sua sensibilidade estética. Os seus textos, publicados a partir de 1893 no jornal Correio da Manhã, refletem já um acentuado pendor ético-social e uma obsessiva interrogação sobre o sentido de um mundo sem valores e em acelerado processo de dessacralização. Nele as chamadas Questão Social e Questão Religiosa fundem-se numa mesma problemática que passará a dar conteúdo às suas obras. Já em História d’um Palhaço (1896) – ultrapassado o efémero naturalismo das suas narrativas de Impressões e Paisagens (1890) – podemos detetar uma projeção desta temática numa tensão entre a idealidade “adolescente” (o sonho) e o pragmatismo do princípio de real, assente numa mentira fundadora a legitimar uma sociedade iníqua. O protagonista K. Maurício tipifica simultaneamente um onirismo decadente específico do ensimesmamento estético finissecular (o romance do eu), uma centração metafísica no tema da morte e um embrião de rebeldia infrutífera contra as forças sociais corruptoras.
O catastrofismo “finissecular” de pendor apocalíptico, ora desesperante ora esperançoso, atinge progressivamente na sua obra uma dimensão patética e interrogativa. Orientada por uma polarização discursiva egocêntrica, aquela oscila entre uma desesperada verificação de um mundo esvaziado espiritualmente e a apetência ambivalente por uma messiânica revolução (redenção) humanitarista, algo que emergirá nebulosamente em Húmus (1917), nas Memórias (1919-1923-1933) e em O Pobre de Pedir (1931).
Já no opúsculo de teor parenético, O Padre (1901), podemos ler: «A época é de tragédia. O que domina é o oiro». Este apelo a uma nova espiritualidade, não poupando a Igreja Católica, pretenderia redimir o mundo então dominado por um hedonismo predador, revalorizando a vertente sacrificial de pendor sacralizante que havia sido um alicerce fundamental de toda a arquitetura social. De outro modo, o “darwinismo social” e o hegemonismo do “Deus-Milhão” só poderiam conduzir vertiginosamente a um Apocalipse sem Deus ou a um demonismo carnavalesco, pelo que só uma postura neo-franciscana, com evidentes ecos do evangelismo socializante de Tolstoi, poderia constituir aí um contraponto soteriológico: «O futuro é daqueles a quem o heroísmo da pobreza atrai» (O Padre). É, aliás, deste fascínio ambivalente pela sacrificialidade dos humildes, quer absurda quer redentora, que se fará a narrativa poética Os Pobres (1906). Nesta o fluxo dolorista desse submundo trágico-grotesco urbano – a sua colaboração regular com a imprensa a partir de 1893 possibilitar-lhe-ia um conhecimento mais profundo das classes mais pobres de Lisboa – constitui um energismo, indutor de perplexidades em função do enigmático sentido da dor num mundo aparentemente desabitado por Deus, mas talvez capaz de o orientar para uma nova religiosidade: «uma terra toda alma». Como diria na “Introdução” a O Cerco do Porto (1915), «cada vez que um Deus morre o seu cadáver corrompe o mundo». Contudo, a sua crítica ao regime republicano pelas expectativas goradas aquando da revolução de 1910, implícita neste texto, não o transporta para uma nostálgica ressurreição do passado, pois «A liberdade é-nos já tão necessária como o ar que respiramos. [...] Precisamos de um ideal comum, se queremos viver. Precisamos de fazer disto uma pátria, onde caibamos todos». Esta aspiração levá-lo-ia, aliás, a constituir o grupo fundador da Seara Nova, em 1921. A História tornava-se assim um pesadelo e a realidade uma mera caricatura grotesca, algo que consagraria dramaticamente nas suas obras historiográficas El-Rei Junot (1912) e A Conspiração de 1817(1914).
A dor do outro social interioriza-se e traduz-se em visões alucinadas e, por outro lado, as feridas íntimas (o remorso, a má consciência burguesa) transcendem o espaço da subjetividade individual e projetam-se nas figuras ambulantes e esboçadas (os “grotescos”) que simbolizam o dolorismo agónico e noturno que o obceca. É esta bipolaridade interativa que orienta a estrutura enunciativa da sua ficção, fundada simultaneamente num redundante compromisso ético e numa consciência extremada das contradições inerentes à condição humana, dividida entre o infinito e o vómito.
As suas prosas constituirão, pois, uma progressão sem soluções de continuidade entre um imaginário decadentista-simbolista finissecular (um egocentrismo catastrofista) e um expressionismo grotesco, materializado numa espécie de teatro de títeres manipulados em função dos fluxos e refluxos emocionais e reflexivos do “autor” ou dos seus duplos (a encenação dos seus fantasmas) e comprometido numa inquirição comovida sobre a natureza humana (o espanto) na busca paradoxal do seu sentido na dinâmica universal. Daí que na sua ficção haja uma evidente desvalorização da história (a intriga), como se esta servisse apenas, no seu fragmentarismo e na sua desconexão discursiva ou na sua temporalidade descontínua, para ilustrar simbolicamente as pulsões que se confrontam no “teatro” interior do egocêntrico narrador.
Outra face da sua cosmovisão sugere-nos um lirismo telúrico, arquitetado nos símbolos nucleares da pedra, da árvore e dos humildes (expressão da ternura matricial do húmus), ou seja, de uma religiosidade que se pontua por uma simpatia irradiante por tudo aquilo que, na sua simplicidade espontânea e pregnante, exprime o esplendor enigmático da alma universal. Para lá, portanto, da efemeridade do social, com o seu cortejo de máscaras, e da mesquinha luta pelo poder, releva-se essa capacidade solidária com a perenidade simbólica e estética de um ser humilde (a Joana de A Farsa, 1903, ou de Húmus, por exemplo) ou de uma paisagem. E tudo isso se torna nele simultaneamente interior e exterior e pode designar-se, nas suas diversas variantes, como o energismo onírico que radicaliza a vida e, em última instância, lhe propicia o único sentido possível. Aquém disto, apenas a relação promíscua com a máscara (o formalismo social ou a morte). E às palavras da sua ficção cabe, por vezes, iluminar esses instantes eternos, que atualizam, no recolhimento quase místico, essa necessária, redentora e poética presença do absoluto. Por isso, em todas as obras do autor é nuclear a oposição reiterada entre o eu social (a máscara) e o eu profundo (o sonho); a imposição do ser para consumo social (o domínio do parecer) e a vertigem do ser autêntico – uma latência obscura apenas revelável socialmente em momentos de crise. O recalcado aí emerge, abalando então a arquitetura frágil que sustentava a identidade e a sua coesão. A ordem desintegra-se e a desordem instala-se, como acontece em Húmus, na farsa trágica O Doido e a Morte (1923) ou no romance póstumo O Pobre de Pedir. A este fascínio ambíguo pela rebelião ou pela centração no drama social dos pobres não seria, de resto, alheio a sua relação simpática com o anarquismo desde a última década do século XIX.
Em Húmus, a enunciação enquanto espaço de estranheza extremada associa-se, por outro lado, à emergência de duas entidades enquanto alteridade ameaçadora na voz do enunciador: eu sou os outros (a máscara social) e eu sou o não-ser (a morte). Ou, num enunciado paradoxal: «Eu não sou quem falo». As suas ficções desenvolvem-se, portanto, sobretudo a partir deste “teatro da consciência”, no qual as forças ocultas e abissais esperam essa situação-limite de revelação (o apocalipse interior) e se expõem enquanto transgressão caótica da Lei, em suma, de um mundo até então vivido como ilusão e baseado numa mentira, mas sem a qual paradoxalmente o homem se submeteria à voragem. A intrusão, mais ou menos abrupta, desse outro niilista na minha própria voz constitui um dos cernes da estrutura enunciativa, quer das suas narrativas (Húmus ou O Pobre de Pedir), quer do seu teatro, publicado entre 1923 e 1929 (O Gebo e a Sombra, O Doido e a Morte, O Rei Imaginário, Eu Sou um Homem de Bem ou O Avejão).
No caso de A Farsa, a protagonista, Candidinha, encarnação ensimesmada do ódio, assume a aventura, simultaneamente trágica e grotesca, desse dualismo insuperável. Ela é tanto a comparsa submissa e histriónica dos cerimoniosos hipócritas de uma burguesia provinciana neófoba, como o vetor de uma rebeldia indómita e maquiavélica face aos códigos socioculturais dessa casta dominante, fossilizada e dividida entre os rituais da caridade e os temores do inferno. Este exorcismo da mentira e esta dissecação dos formalismos de uma moral burguesa perpassam, aliás, toda a obra de Raul Brandão e essa má consciência burguesa atingirá o seu acme com a revolta milenarista de O Pobre de Pedir.
Num outro plano, a dor e o sonho são, na ficção brandoniana, os únicos vetores que intensificam a vida e lhe dão plenitude. Sem eles, a vida reduzir-se-ia aos protocolos da rotina, na espera absurda do desenlace final, às palavras rançosas ditas e reditas, ou seja, à banalização do ser e da linguagem que o sustenta. O sonho e a dor são também, por isso, os fundamentos da sua própria criação estética. O sonho que, por vezes, se confunde, na sua cosmovisão com o ideal é, assim, um vetor que funciona como um antídoto relativamente ao absurdo de ser para não ser. Aliás, a estética do grotesco no autor estrutura-se a partir da fusão promíscua entre a vida e a morte ou da tensão entre a função repressora da máscara e um energismo profundo, caótico e inominável. O sonho dá sentido à vida, pois, sem ele, o homem ver-se-ia condenado à insignificância e ao simulacro. Daí a polivalência do onirismo em A Farsa ou em Húmus. Este é tanto a erupção dos demonismos mais absurdos, como o desejo da aventura mística ou o estabelecimento de humildes laços de ternura. Os santos e os demónios cruzam-se, por vezes, nessa amálgama, porque ambos são a condição para uma relativa superação das limitações ignóbeis impostas ao homem. Mais do que projeção para a ação, o sonho é uma plenitude que coloca o tempo vetorial entre parêntesis e aponta para uma vertical mítico-poética. Mesmo na sua visão da História universal (cf. El-Rei Junot) aquele cristaliza-se simbolicamente numa árvore matricial que condensaria as aspirações irrealizadas pelos homens, desde tempos imemoriais até aos confins dos tempos.
Para lá da vertente noturna da sua obra, as suas narrativas de viagens, Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas (1926), abrem-nos sobretudo à embriaguez da luz e do policromatismo da paisagem (o apolíneo), escrevendo ao jeito impressionista de quem pinta, do mesmo modo que nos “Prefácios” das Memórias se abre a um intimismo autográfico que é simultaneamente uma reinvenção dos espaços e seres da infância e a exaltação da ternura num tempo crepuscular, o dos estertores da monarquia constitucional e o das desiludidas esperanças do período republicano.
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