segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MAS A EUROPA TAMBÉM NÃO TEM QUE "METER O NARIZ" EM PORTUGAL...


ENTREVISTA
“Os portugueses não podem esperar que a Europa resolva os seus problemas”


PEDRO CRISÓSTOMO

24/11/2014 - 07:28


Jacob Soll, historiador da contabilidade, gostaria de estar errado quando pensa que há outros “Espírito Santo” na Europa. O caso BES, diz, é paradigmático pelas falhas de transparência e aos cidadãos cabe exigir mais transparência pública.“A sociedade precisa de partidos políticos que promovam a transparência”, diz Soll MIGUEL MANSO




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Jacob Soll entrou num jogo delicado: explicar como os contabilistas governam o mundo, como o bom ou mau uso dos números determina a ascensão ou queda das nações e empresas. Na obra O Ajuste de Contas, lançada em Portugal na semana passada pela Lua de Papel, o historiador norte-americano destrinça a complexa relação entre contabilidade, transparência e responsabilização financeira.

Faz um retrato casuístico, percorrendo vários séculos – dos funcionários que supervisionavam os cofres públicos na Roma antiga, ao papel dos Médicis na ascensão de Florença, passando pela influência da literacia financeira nos impérios holandês e britânico. Na edição portuguesa do livro, Soll recua à governação do Marquês de Pombal para mostrar como a reforma centralizada das finanças públicas permitiu avanços mas não foi totalmente eficaz. Porque sem “números correctos a partir das bases” e sem uma sociedade com literacia financeira, o sistema não funciona. Em entrevista ao PÚBLICO, o historiador assinala as “diferentes tradições de responsabilidade” financeira na Europa. A história – frisa – ajuda-o a suportar a ideia de como o BES é um caso de má contabilidade e de falhas de supervisão.

No livro, sublinha como a contabilidade pode determinar a ascensão e queda das nações. Na Europa, os governos europeus vivem hoje sob forte controlo da UE, mas o escrutínio não impediu evitar a crise, nem o colapso de bancos. O problema é de transparência?
As instituições não bastam para fazer esse escrutínio. É preciso haver participação cívica, uma cultura de responsabilização e transparência sobre a informação pública. Um exemplo – alguém afrontou o Banco Espírito Santo (BES) e disse: “Queremos ter acesso às contas de todas as holdings no Luxemburgo, da família”? Ninguém o fez. Na Europa, as instituições estão a tornar-se muito complexas, ao ponto de tornarem o controlo muito difícil. Precisamos de uma imprensa económica forte e de exercer pressão pública sobre os partidos políticos, exigindo reformas para que as regras de regulação funcionem. É possível. Basta haver vontade pública e uma sociedade com uma cultura de literacia financeira. Na era de ouro da Holanda, na Inglaterra do século XVIII e na Alemanha do século XIX, as pessoas aprendiam contabilidade na escola e registavam as contas todos os dias à noite, antes de dormir. Perdemos este hábito de transparência. “Abram os livros, quero que haja uma auditoria!”.

Estamos a viver uma crise de confiança nas instituições?
Absolutamente. Ninguém tem confiança nas instituições e isso paralisa a democracia. Não nos questionamos sobre questões básicas da democracia. Esse é o problema. Juntem-se e avancem com um movimento popular. Pode parecer despropositada, mas esta ideia de escrutínio público já tem centenas e centenas de anos. Esperar que as culturas financeiras se reformem por si próprias é o mais difícil de concretizar.

Que lições da história nos ajudam a lidar com estas falhas?
Recuemos ao Charles Dickens e à Inglaterra do século XIX – o período que mais se aproxima do tempo que estamos a viver. Os problemas sucediam-se e ninguém acreditava em nada. Tudo se revelava ser uma fraude. Os bancos, as companhias públicas tornavam-se multinacionais e estavam presentes em todo o lado. A literatura, a imprensa económica, firmas de contabilidade independentes, a contabilidade estão representadas na pintura. Havia uma cultura de transparência que não era apenas uma expressão, mas uma prática enraizada no dia-a-dia. Hoje, quando abrimos um jornal ou procuramos alguma coisa no Youtube, o que é que encontramos sobre contabilidade? Parece paranóico e estúpido, mas é verdade. Balzac era fascinado por contabilidade…

Hoje, temos muito mais formas de escrutínio sobre os poderes públicos.
A questão é que hoje tudo se desenrola com mais rapidez e o acesso à informação é tão vasto. Não nos focamos em coisas que exigem tempo, como a contabilidade. Quando estamos a passar por uma crise, temos de reclamar transparência e responsabilidade. É, desde logo, preocupante o facto de este ser o primeiro livro sobre a história da contabilidade…

Na Europa, os países do Norte e os do Sul têm formas diferentes de encarar a contabilidade?
Cada país tem a sua tradição. O que há são diferentes tradições de responsabilidade, não de contabilidade.

O que é que isso significa?
Podemos perguntar-nos: os banqueiros são mais responsáveis na Alemanha ou aqui? É uma pergunta difícil. Há países mais responsáveis, o que significa melhor contabilidade. Na Holanda, as pessoas são muito rigorosas em relação à contabilidade. Portugal talvez tenha uma cultura de responsabilidade menor; a Grécia não tem uma verdadeira cultura de contabilidade – nenhum partido, da esquerda à direita, quer que se “abram os livros”.

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