"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
sexta-feira, 28 de junho de 2013
SOBRE "OS MAIAS": TEXTO DE JACINTO PRADO COELHO, em WWW. faroldasletras.no.sapo.pt
A Inserção do Insólito no Quotidiano;
A Compensação Irónica
Um dos mais difíceis problemas levantados por Os Maias ao autor é o da inserção do insólito do incesto (trágico, sim, mas, sob o prisma oitocentista, romanesco, folhetinesco também) na trivialidade chã da comédia lisboeta. Eça de Queirós, notarei desde já, resolveu o problema com subtil mestria. Incorporou assim o trágico amor impossível, com todas as suas românticas implicações, no realismo do romance de costumes. E não se pretenda que o dissolveu pela ironia ou pela censura crítica. O trágico subsiste n' Os Maias como um dos valores estéticos maiores.
Um dos processos utilizados por Eça é o da reacção das personagens perante o que julgam inverosímil, inacreditável. «Ega recomeçou a passear lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subia nele um incredulidade contra esta catástrofe de dramalhão [a literatura defende-se aqui aludindo a si própria]. Era acaso verosímil que tal se passasse, com um amigo seu, numa rua de Lisboa, numa casa alugada à mãe de Cruges?... [É a natural revolta, em Ega, contra a brutal intromissão aleatória do insólito na normalidade do dia-a-dia.] Não podia ser! Esses horrores só se produziam na confusão social, no tumulto da Meia Idade! Mas numa sociedade burguesa, bem policiada, bem escriturada, garantida por tantas leis, documentada com tantos papéis, com tanto registo de baptismo, com tanta certidão de casamento, não podia ser!» E o monólogo interior prossegue, antecipando-se à crítica do leitor, tirando-lhe a força que podia ter se o narrador parecesse ingénuo: «Não era possível. Tais coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para dar à alma humana um terror novo...» (p. 621).
Outro processo consiste noutra forma de reacção, a que já aludi atrás: o Ega tenta explicar o sucedido por uma causa natural: a superioridade de Carlos e de Maria Eduarda, que tinha de ressaltar e de os aproximar numa «cidade provinciana e pelintra» como Lisboa. E é ainda o Ega, a personagem mais útil nesta manipulação do insólito, quem procura dar certa naturalidade à história, destragicizar o incesto, lembrando um caso ocorrido em Celorico, no lugar de Vouzelas: o caso de «dois irmãos que inocentemente iam casar» e que terminou bem: «Os noivos ficaram uns dias "embatucados", como dizia o padre Serafim; mas por fim já riam, muito amigos, muito divertidos, quando se tratavam de "manos"» (p. 627). O pobre do Ega tenta juntar argumentos para convencer Carlos de que o incesto não era «tão pavoroso» como se podia imaginar, não havia de estragar necessariamente uma existência. Simples desgosto dum amor acabado, «Bem menos atroz do que se Maria o tivesse traído com o Dâmaso.»
Carlos, por seu turno, desmitifica o incesto submetendo-o a uma análise cujo móbil, no âmago, é a revolta - o seu amor defendendo-se, não querendo morrer, só porque as revelações de um Guimarães e uma caixa de charutos cheia de papéis velhos o declaravam impossível, e lhe ordenavam que morresse!» (p. 647). O passo aduz uma realidade irónica implícita: o que é grave não é fazer mas saber, o pecado (e o sentimento de culpa, que altera a imagem do amor e a da amada) só existe depois de se saber: o mal não está, pois, num facto objectivo mas num facto subjectivo. Todavia, Carlos dá-se conta adiante (e com ele o leitor) de que a proibição não é só um fantasma da razão: instalou-se no subconsciente do amante: o divino corpo da amada, porque ele sabe que ela é sua irmã, torna-se-lhe repulsivo.
Ainda um processo de inserir o insólito no quotidiano, o lance trágico no realismo charro, é moderar as consequências do incesto (profundas, sim, mas não espectaculares) no espírito de Carlos. O remorso pelo acto nefando cometido (mesmo depois de conhecer a verdade medonha), o arrependimento por haver causado a morte do avô, o desgosto por ter sido obrigado a renunciar a Maria - todos esses golpes terríveis não chegam para o destruir. Carlos não se suicida, viaja. Tira partido do dinheiro que possui. Sem dúvida, ficam-lhe traços indeléveis na alma, sabemo-lo através do Ega, mas este, nas palavras, não exagera, reduz a desmesura à pacatez do quotidiano: «Ega confessou que Carlos ficara ainda "abalado". Vivia, ria, governava o seu faetonte no Bois - mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada e negra, a memória da "semana terrível"» (p. 689). Dez anos após a catástrofe, no Ramalhete abandonado, em conversa com o Ega, pondera Carlos filosoficamente: «- E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, como uma conclusão lógica. Por fim, dez anos passaram, e aqui estou outra vez... / Parou diante do alto espelho suspenso entre duas colunas de carvalho lavrado, deu um jeito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente: / - E mais gordo! (p. 712). Podemos pensar que Carlos, embora capaz duma paixão intensa, é mais frio, menos impulsivo do que o pai. Porque foi educado de outra maneira, porque pertence a uma geração diferente? O que, neste momento, cumpre salientar é a verdade humana do seu comportamento; nesta verdade humana se manifesta o realismo do romance. Discretamente, sem esgares, tudo se resolve num sorriso triste, numa ironia melancólica - a ironia de, passados os transes patéticos, as dores se atenuarem, os sentimentos amortecerem, o homem se acomodar, se contentar com os pequenos prazeres que a vida lhe proporciona.
Faltou mencionar um processo, por assim dizer, constante em Eça de Queirós: o contraponto do sério e do cómico, a atenuação do trágico pelo ridículo. Desta compensação irónica serve de exemplo, no respeitante ao caso do incesto, o que há de ridículo no lugar-comum empregue por Guimarães para resumir a situação: «- Enfim, nem eu sei, um horror! / - um drama! - resumiu gravemente o Sr. Guimarães» (p. 620). A distensão do trágico obtém-se também pela interferência, tão frequente no romancista, dos prazeres da comida nas preocupações mais graves: «- O bife era excelente: - e depois de uma perdiz fria, de um pouco de doce de ananás, de um café forte, Ega sentiu adelgaçar-se, enfim, aquele negrume que desde a véspera lhe pesava na alma. No fim, pensava ele, acendendo o charuto e lançando os olhos ao relógio, naquele desastre, praticamente encarado, só havia para Carlos a perda duma bela amante» (p. 630). Quando vai um alvoroço pelo Ramalhete e Ega conta a Carlos as revelações terríveis do Sr. Guimarães, um intermédio burlesco, o Vilaça à procura do chapéu, interfere ciclicamente na conjuntura dramática. É, uma vez mais, o processo compensatório do romancista - o realismo da alternância do cómico e do trágico. No epílogo, a cena dos espirros, durante a visita lúgubre de Carlos e Ega ao Ramalhete, desempenha uma idêntica função.
Coelho, Jacinto do Prado, AO CONTRÁRIO DE PENÉLOPE - Para a compreensão d' Os Maias como um todo orgânico , Venda Nova, Bertrand Editora, 1976
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