sábado, 22 de junho de 2013

PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA (BERNARDO SOARES) DO "LIVRO DO DESASSOSSEGO"-pesquisa NET









..."Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. 

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã, senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. 

É esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não o sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã ele talvez já não tenha nunca existido. 
Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o momento em que ainda não é antemanhã.

E a luz brota tão serenamente e perfeitamente nas cousas, doura-as tão de realidade sorridente e triste! Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua.

Ah, como as cousas quotidianas roçam mistérios por nós! Como à superfície, que a luz toca, desta vida complexa de humana, a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundo tão antigo, tão oculto, tão tendo outro sentido que aquele que luz em tudo isto! 

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuvas contra um raio.

Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.

Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia. 

Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar n' ele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali."(...)

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