sexta-feira, 22 de novembro de 2013

KIRKEGAARDE-UM POUCO DE FILOSOFIA












Filósofo ou Religioso?

A posição de Kierkegaard leva algumas pessoas a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seu pensamento. Pra elas, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo. Para além das minúcias que essa distinção envolveria, cabe verificar o que ela pode trazer de esclarecedor acerca do estilo de pensamento de Kierkegaard. Pode-se perguntar, por exemplo, quais as questões fundamentais que lhe motivam a reflexão, ou, então, qual a finalidade que ele intencionalmente deu à sua obra.

Estamos habituados a ver, na raiz das tentativas filosóficas que se deram ao longo da história, razões da ordem da reforma do conhecimento, da política, da moral. Em Kierkegaard não encontramos, estritamente, nenhuma dessas motivações tradicionais. Isso fica bem evidenciado quando ele reage às filosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou as inconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria idéia de sistema e aquilo que ela representa.

Para Hegel, o indivíduo é um momento de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, ao mesmo tempo, ele encontra sua realização. O individual se explica pelo sistema, o particular pelo geral. Em Kierkegaard há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e do caráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar o sentido do indivíduo numa harmonia racional que anula as singularidades, mas, sim, na afirmação radical da própria individualidade.

De onde provém, no entanto, essa defesa arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição teórico-filosófica a Hegel, mas de uma concepção muito profunda da situação do homem, enquanto ser individual, no mundo e perante aquilo que o ultrapassa, o infinito, a divindade. A individualidade não deve portanto ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a solidão característica do homem que se coloca como finito perante o infinito. A individualidade define a existência.

Para Kierkegaard, o homem que se reconhece finito enquanto parte e momento da realização de uma totalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é infinito. Ora, comprazer-se na finitude é admitir a necessidade lógica de nossa condição, é dissolver a singularidade do destino humano num curso histórico guiado por uma finalidade que, a partir de uma dimensão sobre-humana, dá coerência ao sistema e aplaca as vicissitudes do tempo.

Mas o homem que se coloca frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico não se vê diante de um sistema de idéias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é o sucedâneo afetivo daquilo que não posso compreender racionalmente; tampouco é um estágio provisório que dure apenas enquanto não se completam e fortalecem as luzes da razão. É, definitivamente, um modo de existir. E esse modo me põe imediatamente em relação com o absurdo e o paradoxo. O paradoxo de Deus feito homem e o absurdo das circunstâncias do advento da Verdade.

Cristo, enquanto Deus tornado homem, é o mediador entre o homem e Deus. É por meio de Cristo que o homem se situa existencialmente perante Deus. Cristo é portanto o fato primordial para a compreensão que o homem tem de si. Mas o próprio Cristo é incompreensível. Não há portanto uma mediação conceitual, algum tipo de prova racional que me transporte para a compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, dotado, e o fato igualmente incompreensível do sacrifício na cruz. Aqui se situam as circunstâncias que fazem do advento da Verdade um absurdo: a Verdade não nos foi revelada com as pompas do conceito e do sistema. Ela foi encarnada por um homem obscuro que morreu na cruz como um criminoso. O acesso à Verdade suprema depende pois da crença no absurdo, naquilo que São Paulo já havia chamado de "loucura". No entanto, é o absurdo que possibilita a Verdade. Se permanecesse a distância infinita que separa Deus e o homem, este jamais teria acesso à Verdade. Foi a mediação do paradoxo e do absurdo que recolocou o homem em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Somente dessa maneira nos colocamos no caminho da recuperação de uma certa afinidade com o absoluto.

Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade, o aprofundamento da subjetividade. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse sentimento, jamais nos situaremos verdadeiramente perante o fato da redenção e, conseqüentemente, da mediação do Cristo.



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