quinta-feira, 10 de outubro de 2024

VIDAS...

 

“Fui resgatado por um gato. Seu focinho surgiu de repente entre os arbustos, e nos encaramos, surpresos, por um momento. Era um gato robusto, de um laranja desbotado, com orelhas mastigadas e o semblante duro e calejado de um velho guerreiro que sobreviveu a inúmeras batalhas. Ele me observou com cuidado e, sem hesitar, começou a lamber meu rosto.
Eu não me iludia com aquele afeto repentino. Ainda tinha farelos de bolo de papoila grudados nas bochechas e no queixo, colados às minhas lágrimas. Ele estava interessado naquilo, claramente. Mas eu não me importei. A sensação daquela língua quente e áspera no meu rosto trouxe-me um sorriso inesperado. Fechei os olhos e me entreguei àquele momento. Naquele instante, não me importava o que estava por trás daqueles gestos. O que importava era que um focinho amigável e uma língua cuidadosa estavam ali, com todas as aparências de ternura e compaixão.
Não precisava de mais para ser feliz. Quando ele terminou de me limpar, me senti melhor, como se o mundo, de repente, voltasse a me oferecer possibilidades e amizades que não podiam ser ignoradas. O gato esfregou-se em mim, ronronando, e eu tentei imitar seu ronronar. Nós dois compartilhamos aquele som reconfortante, e ele parecia entender. Tirei os restos de bolo do bolso e ofereci a ele. O gato cheirou, interessado, encostou seu nariz no meu, e sua cauda rígida sinalizou aprovação.
Então, ele mordeu minha orelha de leve. E foi naquele instante que percebi: valia a pena viver de novo. Poucos minutos depois, saí do meu casebre, mãos nos bolsos, assobiando, com o gato fielmente me seguindo. Sempre pensei que, se quiser ser amado de forma verdadeiramente altruísta, é melhor manter algumas migalhas de bolo em si mesmo.”
– Romain Gary, Promessa do Amanhecer
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