quarta-feira, 4 de maio de 2016

Notícia de há um ano, in www.publico.pt, sobre a destruição da cidade de MARI, pelos Extremistas islâmicos.

ENTREVISTA

“Mari condensa toda a Mesopotâmia e imaginá-la destruída é muito triste”

Jean-Claude Margueron dedicou-se ao estudo da Mesopotâmia e dirigiu escavações na antiga Mari, na Síria, durante 25 anos. Apaixonou-se pelo deserto e pelo Eufrates na sua primeira viagem e nunca deixou de regressar. Nesta entrevista fala das cidades na Antiguidade e de como um ataque à arqueologia no Médio Oriente é um ataque universal, uma catástrofe.
Jean-Claude Margueron tem 80 anos, boa parte deles passados a trabalhar a partir das campanhas arqueológicas que, entre 1979 e 2004, dirigiu em Mari, importante cidade da Mesopotâmia fundada por volta de 2900 a.C.. Define-se como um historiador apaixonado pela Mesopotâmia e foi nessa qualidade que esteve em Lisboa para participar no colóquio Na Fronteira entre o Mito e a História – Representações do Espaço e do Poder na Antiguidade, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
De uma energia que parece inesgotável, Margueron, um dos mais respeitados académicos que se dedicam ao estudo das sociedades que gravitaram em torno dos rios Tigre e Eufrates, está hoje oficialmente reformado, mas isso não o impede de continuar a escrever sobre a Mesopotâmia e a ensinar na École Pratique des Hautes Études, em Paris.
No colóquio de Lisboa, o historiador falou dos lugares de poder na Mesopotâmia, de como são difíceis de identificar. E, para o fazer, foi lançando perguntas como “O que é um palácio?” e “O que é que o distingue de um templo se usa os mesmos dispositivos e se nele o rei se faz adorar como um deus?” Os lugares de poder, explicou, não são fáceis de definir em arqueologia, nem mesmo quando se cruza a informação que nos dá a arquitectura com fontes documentais, e na Mesopotâmia evoluem à medida que as próprias cidades se transformam, assim como o papel do rei enquanto líder político e militar.
Mari, a actual Tell Hariri síria, a 15 quilómetros da fronteira com o Iraque, foi uma importante metrópole do Eufrates médio e é escavada por arqueólogos franceses desde 1934. Foi o primeiro director de escavações, André Parrot, que levou pela primeira vez Jean-Claude Margueron para o Médio Oriente e para o deserto. Sabê-la hoje ameaçada pela guerra e em parte destruída é para o historiador francês “devastador”.
Como é que Mari aparece no seu percurso?
Eu tinha 13 anos e estava de férias numa pequena ilha, na praia. Havia mais duas famílias para além da minha e uma delas era a de André Parrot. Foi assim que o conheci e brinquei com os seus filhos. Fiquei a saber o que fazia pelas conversas dos adultos. A princípio, claro, ele não se interessou nada por mim, mesmo nada. Só passou a interessar-se quando percebeu que eu ia assistir às suas conferências e que tinha decidido fazer do Oriente a minha vida. Foi aí que Parrot me perguntou se estava interessado em acompanhá-lo na campanha seguinte de escavações. Bom, era uma aventura: viajar para descobrir o Oriente aos 19 era tudo o que eu queria. O meu pai só aceitou quando lhe expliquei que precisava de ir para ter a certeza de que era aquilo que queria fazer com a minha vida – e era.
Equipa da 15ª campanha de escavações em Mari, em 1965: Jean-Claude Margueron é o segundo à direita e André Parrot é o quinto à direita (director) ARCHIVO DE LA MISIÓN DE MARI
Qual é a imagem que guarda dessa primeira viagem?
A da chegada. É um cenário impressionante, mesmo sem construções espectaculares em  efeito. Houve um fascínio pelo sítio, mas também pelo Oriente, pelo deserto, pelo vale do Eufrates. Havia ali um mundo natural que, apesar de transformado, estava ainda muito próximo da Antiguidade. E havia também aquela imensa ruína capaz de produzir palácios, templos, estátuas… Uma cidade desaparecida que encerrava um mundo inteiro, toda uma sociedade.
O que é que faz dela uma cidade singular no contexto da Mesopotâmia? Muitos ouviram já falar de Babilónia mas serão poucos os que sabem o que é Mari ou onde fica…
A Babilónia é um monstro que não existe, um mito, ao passo que Mari é verdadeira, é uma cidade em que se pode fazer História. E eu sou um historiador, não vivo no mito. O que me interessa é saber como se vivia ali, nas margens do Eufrates, há cinco mil anos. O que me apaixona no trabalho que faço é a possibilidade de pôr em evidência as características da primeira sociedade urbana, da primeira civilização urbana. Antes de Mari isso não existe.
Mari é a primeira cidade?
Não, mas é uma das mais antigas. É difícil identificar a primeira, mas é do quarto milénio a.C., e Mari é do princípio do terceiro.
Porque é que o homem sentiu necessidade de construir cidades?
Porque a vida se tornou mais complexa, exigia mais organização, e ele percebeu que, se queria que as suas construções durassem – falamos de construções em tijolo cru, difícil de preservar num território sujeito a cheias - era preciso criar um meio urbano harmonioso. E nesse meio urbano as cidades nascem com ruas radiais e canais que as atravessam ou canais periféricos. Mari é certamente uma das primeiras cidades em meio urbano.
O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que não está sozinha, que funciona em rede com outras cidades ligadas por canais e rotas. Mari é uma grande cidade logo no momento da fundação [as escavações mostram três níveis de ocupação, mas sempre com cidades] porque ela controla a rota do cobre e de outros metais que vem da Anatólia e se dirige para a Babilónia. Ela assegura, para seu benefício, o transporte e até a transformação e venda destes materiais. Nela a metalurgia do cobre e do bronze é decisiva. Mari é um dos sítios que melhor nos permitem compreender a civilização do Próximo Oriente desta época.
E porquê?
Porque há muitas coisas bem conservadas. Além disso foi um lugar rico, com recursos, escavado de forma sistemática desde 1934 - houve mais de 40 campanhas em Mari. É claro que os arqueólogos não fizeram as coisas da mesma maneira…
A arqueologia no período colonial era orientada para o objecto…
Claro. No princípio escavou-se sem parar à procura de peças de grande espectacularidade e depois, na segunda metade do século XX, foi-se caminhando para uma arqueologia mais precisa, rigorosa, que fazia depender a linha de investigação das descobertas no terreno. Um exemplo: em 2000 descobri que as ruas eram feitas de uma combinação de materiais que permitia a absorção muito rápida da água das chuvas, impedindo a formação de poças e de lama. Mas fiz esta constatação escavando apenas uma rua. No ano seguinte, escavámos todas as que tínhamos já identificado à procura da mesma combinação de materiais, isto para que uma descoberta não se esgote nela mesma, para que sirva para ampliar o conhecimento.
Jean-Claude Margueron a escavar em Mari em 1938: depósito da fundação do Templo dos Leões ARCHIVO DE LA MISIÓN DE MARI

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