domingo, 27 de março de 2016

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OPINIÃO
O efeito Marcelo


TERESA DE SOUSA

27/03/2016 - 06:11







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TÓPICOS

Mario Draghi
Marcelo Rebelo de Sousa
Conselho de Estado
Bruxelas
Passos Coelho


1. Vivemos todos a última semana com os olhos postos nos atentados terroristas em Bruxelas e nas gigantescas operações policiais levadas a cabo em França e na Bélgica para impedir outros, já em preparação “avançada”. A crise brasileira, que mesmo os piores cenários não conseguiam prever, mobilizou igualmente a nossa atenção. Finalmente, num mundo em que só há más notícias, a visita histórica de Obama a Havana e a verdadeira festa que ela representou para os cubanos foi uma espécie de bálsamo. Não demos, talvez por isso, a atenção devida a dois acontecimentos nacionais, ambos protagonizados por Marcelo Rebelo de Sousa. Primeiro, ouvimos, com alguma surpresa, as declarações do Presidente na cerimónia de cumprimentos do Governo. Marcelo não deixou quase nada por dizer sobre o sistema financeiro, com uma novidade a que nos podemos habituar desde já: em vez de deixar recados nas entrelinhas, para serem descodificados segundo as conveniências de cada um, deixou palavras claras e compreensíveis sobre um dos temas que mais nos preocupam neste momento – as enormes fragilidades da banca portuguesa. O Expresso tinha noticiado uma reunião do primeiro-ministro com Isabel dos Santos relacionada com a situação do BPI e do BCP. Passos Coelho tinha desancado António Costa por se imiscuir em assuntos privados com os quais não tinha nada que ver. Marcelo resolveu entrar no debate, clarificando o que pensa (o mesmo que muita gente, incluindo no PSD). Não se trata da “partidarização da vida empresarial”, trata-se do “cumprimento da Constituição, que subordina o poder económico ao poder político e que determina que o poder político salvaguarde um conjunto de princípios fundamentais do Estado de direito democrático” A intervenção dos órgãos de soberania justifica-se, disse ele, em situações em que esteja em causa estabilidade do sistema financeiro, o “interesse público” e o envolvimento de dinheiros públicos, como é o caso. As suas palavras foram direitinhas para Pedro Passos Coelho, impedindo qualquer tentativa de não ligar uma coisa à outra, graças à clareza com que foram pronunciadas.

Há aqui um lado de ficção, porque ninguém acredita que Passos não soubesse de nada. Mas há também uma profunda crença ideológica, cujo problema maior é que está a começar a ficar em desuso, até nos países mais liberais do mundo, como os EUA e o Reino Unido. Alan Greenspan, que presidiu à Reserva Federal antes da crise financeira, fez a sua mea culpa ao Congresso americano, confessando que acreditara em que os mercados funcionavam de forma racional, movidos pelo seu próprio interesse, e que nunca esperou que atingissem um tal estado de dessintonia da realidade económica que esteve por trás da crise hipotecária em 2007 e, depois, da crise financeira que afectou o mundo inteiro. Já sabemos hoje que os mercados financeiros também podem fazer haraquiri. Foi a mesma ideia de que o Estado americano não tinha de se envolver com as grandes empresas financeiras que transformou a crise do subprime na crise financeira global. Quando se tornou claro que o velho gigante do investimento Lehman Brothers estava perto da falência, Bush decretou que esse não era um problema seu. Bastaram 15 dias para descobrir qual foi a consequência dessa decisão. Também sabemos outras coisas, como, por exemplo, que o Governo de Merkel injectou quase tanto dinheiro na banca alemã como o Governo britânico para a pôr a salvo e que não deixou que os bancos dos Länder (estados regionais) ficassem sob o mecanismo de supervisão europeu, dada a sua forte ligação às economias de cada região. Passos apresentou-se contra a promiscuidade entre a banca (no caso, o BES) e a política. Até aqui tudo certo. Mas essa era apenas uma parte do problema. A outra era garantir a solidez do sistema bancário nacional, em vez de esconder as suas enormes fraquezas, como se não fosse nada com ele. Do mesmo modo, a velha ideia segundo a qual qualquer intervenção estratégica do Estado sobre a economia é um pecado mortal (porque afecta a liberdade dos mercados ou porque, na versão de alguns, é substituir a competência dos mercados pela incompetência pública) é cada vez mais uma esquisitice nacional que nem a mais liberal Inglaterra pratica. Sabemos que a concorrência ainda não deixou de ser a melhor forma de melhorar aperformance das empresas. Mas é preciso deitar um olho a Bruxelas para ver se toda a gente é tratada da mesma maneira e é preciso olhar para os mercados a ver se não voltam a praticar haraquiri.

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