domingo, 19 de outubro de 2014

DE PORTUGAL...A LADROEIRA DOS espírito santo.( Recomendo a leitura integral deste artigo



BES:Crónica do fim do império: Ascensão e queda dos Espírito Santo


CRISTINA FERREIRA


Durante vários meses, a Revista 2 tentou perceber como se gerou a bola de neve que ninguém conseguiu controlar, mas que acabou por arrasar o segundo maior banco português. Uma actuação imprudente e de suspeita de ilicitudes do seu accionista, o GES, contribuiu para o fim de um grupo com quase 150 anos. A comissão de inquérito parlamentar à falência vai começar nos próximos dias, ouvindo dezenas de pessoas.

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A “detenção” para interrogatório neste Verão do ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, considerado, até então, uma das figuras mais influentes da sociedade portuguesa, cabe num filme em que a realidade parece superar a ficção. Neste enredo, há um pouco de tudo: contornos policiais, traições, intrigas e muita desorientação. Um grupo mergulhado em entropias; uma crise económica mais longa do que o expectável; operações ruinosas (por exemplo, negócios que deram prejuízos, investimentos a preços superiores ao valor real dos activos), ou de duvidosa legalidade (veículos que podem ter servido para ocultar prejuízos); exposição descontrolada do BES à filial angolana (o BES Angola, BESA), com dinheiro a escorrer para vários bolsos (5900 milhões de euros que não se sabe onde param). A mistura foi explosiva. E havia ainda um primo, José Maria Ricciardi, que desde cedo se tentou distanciar das irregularidades cometidas no grupo, desafiando a autoridade e a cadeira do chefe do clã que se perdeu no mundo do poder.

A história inclui também um psicodrama: um procurador a reunir os fios das várias meadas; um Banco de Portugal (BdP) hesitante em atacar eficazmente os problemas que iam surgindo; e um governo que para escapar às críticas associadas à nacionalização do BPN se mostrava desinteresasdo em intervir; e um primeiro-ministro e uma ministra das Finanças que, ao não actuarem a tempo com as armas todas — por não perceberem ou por não quererem perceber —, não evitaram a falência de um grupo de expressão internacional ancorado no segundo maior banco privado.

O castelo de cartas desmoronou-se. Mas o que levou ao colapso não foi a guerra entre primos, as falhas de regulação ou a ausência de empenho do executivo. Foram os erros de gestão, as irregularidades, a falta de compreensão, por parte de Ricardo Salgado, hoje com 70 anos, de que o tempo mudara com a crise e já não tinha dinheiro para preservar a influência. Atrás de si arrastou a maior operadora de telecomunicações, com gestores apanhados na rede dos interesses do accionista BES e não nos da empresa. É uma história com diferentes leituras e muitos protagonistas a tentarem fazer passar as suas versões. Que se conta pelos detalhes.

Para perceber como se gerou uma bola de neve que ninguém conseguiu controlar, a Revista 2 ouviu várias personalidades, coligiu muitos dados e consultou múltiplos documentos. E todas as informações deste texto têm por base testemunhos directos e verificáveis recolhidos junto de fontes, que aceitaram identificar-se ou não. Ricardo Salgado declinou falar com a Revista 2 e não respondeu às questões que lhe foram dirigidas por email, por estarem em segredo de justiça. José Maria Ricciardi escusou-se a ser entrevistado. O Banco de Portugal remeteu para declarações públicas onde explica que tudo fez para garantir a sustentabilidade do sistema financeiro.

Final da década de 1990

A economia cresce, o processo de privatizações do sector financeiro chega ao fim, os mercados internacionais revelam dinamismo. Mas o novo século irá colocar grandes desafios: a moeda única europeia estava a rolar, a China já não era um dragão adormecido, o preço do petróleo iniciara uma trajectória de subida imparável. E Portugal estava prestes a ficar anémico.

7 de Junho de 1999. O grupo espanhol Santander anuncia que vai comprar 40% da holding seguradora Mundial Confiança (BPSM/CCP/Totta), dominada por António Champalimaud, sem ter a autorização prévia do Governo que a lei exigia. O ministro das Finanças Sousa Franco acusa o banco espanhol de se ter articulado com o industrial “para enganar o Estado português” e veta a operação.

18 de Junho. O braço-de-ferro entre Sousa Franco e Emilio Botín, presidente do Santander, abre espaço a um ataque do BCP, então liderado por Jorge Jardim Gonçalves, que lança uma OPA sobre o grupo de Champalimaud. Ao bater-se pela partilha do espólio do industrial, o BCP, que já absorvera o Banco Português do Atlântico e o Banco Melo, pretende garantir o primeiro lugar do ranking da banca privada. Conta-se que o presidente do BES, Ricardo Salgado, estava em Lausanne num encontro familiar e, ao ser informado, se sentiu mal. O passo exige-lhe uma acção. E num contacto com Artur Santos Silva, presidente do BPI, abordaram uma fusão.

2000

17 de Janeiro. Na sala do Hotel Ritz para onde entram Ricardo Salgado e Artur Santos Silva, o ambiente não é de festa, apenas cordial. A concentração bancária pode mudar a configuração do sector. Se vingar, o BES e o BPI passarão a deter, respectivamente, 59% e 41% do denominado BES.BPI, que será líder.
Salgado e Santos Silva no dia do encontro no Ritz ADRIANO MIRANDA

Em processos de concentração, a tendência é irresistível: cada uma das partes pensa que pode dominar a outra. O BES confiava que ia amarrar o BPI pois era maior, enquanto o BPI, por se julgar mais profissional, acreditava que ia influenciar e condicionar a sua estratégia. Quando as equipas dos bancos já estavam no terreno a ultimar a fusão, surgiram os primeiros equívocos.

6 de Março. Em declarações ao Diário de Notícias, Ricardo Salgado dá a entender que a designação “BPI” é para cair: “A marca BPI é jovem, não tem a notoriedade do BES.” A frase gera mau clima no parceiro. Três dias depois, a 9 de Março, o vice-presidente do BPI, Fernando Ulrich, reage em entrevista ao PÚBLICO: “Não estou disponível para um projecto Espírito Santo. Considero, aliás, que a fusão pode trazer muito mais valor para os dois grupos do que um projecto apenas Espírito Santo.” Mas uma família como a Espírito Santo dificilmente aceitaria acrescentar outro nome ao seu. Então, numa segunda ronda negocial, Salgado e Santos Silva acordam dar mais poder ao BPI, o que não vai ser aceite pelo Grupo Espírito Santo (GES).

26 de Março. Um domingo. A família Espírito Santo foi sempre uma estrutura de aritmética difícil e o seu conselho superior, que reúne os cinco ramos, uma caixa negra. Salgado é adepto da fusão, mas terá o poder absoluto? Com a entrada de investidores, como o Banco Itaú e o La Caixa, no universo do GES, os primos deixavam de ser dominantes. Há outra questão: o estilo de governação teria de mudar. O que, na prática, se traduzirá, entre muitas outras coisas, na alteração do esquema remuneratório generoso (dividendos e salários) que protege os membros Espírito Santo. No dia seguinte, Salgado, indicado para ser o CEO, telefona a Santos Silva (que colocava reticências à concentração), que ficaria chairman, e diz-lhe: o BES não assina o acordo.

Na opinião do ex-ministro das Finanças Eduardo Catroga, colega de Salgado na Faculdade de Economia do Quelhas, em Lisboa, a aproximação do BES ao BPI “não só visava contrariar o peso crescente do BCP, mas também libertar o banco e os negócios da pressão da família e da dependência dos seus interesses”. Na altura, diz, “já era possível detectar deficiências no modelo de governação, pela escolha dinástica do chairman do GES [António Ricciardi, hoje com 90 anos], que é quem deve representar o equilíbrio do poder”. Por isso, o actual chairman da EDP (Catroga) defende que “não é possível compreender o que se passou sem olhar a dois factores estruturais”: o facto de o GES “ter renascido no estrangeiro” depois do 25 de Abril, “associado à credibilidade do nome”, e ter-se endividado para comprar o BES e a Tranquilidade. Trinta anos depois, o peso da dívida continuará a persegui-los.

Foi a partir de 2000 que Salgado iniciou uma estratégia tentacular junto do poder político e económico? Catroga responde: “Essa visão é redutora. Não passa de um feeling.” Mas a verdade é que esse foi o ano que marcou a ascensão do banqueiro. E também o fim de um grupo com quase 150 anos.

29 de Março. Para ganhar quota de mercado e esgotada a via da fusão, o banqueiro tem agora pela frente um caminho estreito: o crescimento orgânico. O que exige mudanças nas estruturas de governação do BES, que passam a integrar uma maioria de gestores e directores independentes recrutados fora da família. Data da época a criação de um gabinete de imprensa que vai ser muito útil para a afirmação pessoal do banqueiro. Nos anos seguintes, Salgado conquistará crescentemente uma aura de infalibilidade que o tornará uma figura dominante na sociedade portuguesa. O estilo de exercício do poder ajuda: raramente levanta a voz; os nãos são em regra suaves. E ainda por cima apresentar-se-á com “êxito”.

Verão de 2000. Remonta a Agosto o primeiro grande confronto com Pedro Queiroz Pereira (P.Q.P.), presidente da Semapa. O industrial é accionista do GES e lança uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre a Cimpor e, em vez de procurar financiamento junto do BESI, foi ter com o Santander. A equipa de Salgado leva a mal e vai ajudar a que a cimenteira fosse antes parar à Teixeira Duarte. Ora, o industrial tem o seu feitio e os insultos aparecem.

A disputa está ao rubro quando Patrick Monteiro de Barros, administrador da Espírito Santo Financial Group (ESFG) (holding da família com a posição directa no BES), oferece uma recepção na Quinta Patino, pertença do GES. Conta quem assistiu: “A certa altura, o Pedro [P.Q.P.] entrou e vendo o ‘Ia’ [como Ricciardi é conhecido entre os amigos] foi falar com ele: ‘Vocês [ES] são inconcebíveis!’” O ainda administrador do BESI argumenta: “Não é altura para discussões.” Mas o industrial teima: “Sim porque vou vender a minha posição no grupo.” Ricciardi rebate: “É pá vende, vende…” O que aquece o diálogo: “Esse … [Salgado] é um…” Não tinha completado a frase, já o outro estava a protestar: “É pá não faço aqui mais nada para não estragar a recepção do Patrick e nunca mais te dirijo a palavra até me pedires desculpa.” Quem presenciou lembra que “o ‘Ia’ abandonou o recinto de cabeça perdida e o Pedro não se calava.” Antes de sair, Ricciardi comenta para um amigo: “Vou-me embora com o estômago a dar voltas.”

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