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Manuel da Fonseca e a apologia do belo
Em 1988, em entrevista a Francisco José Viegas, Manuel da Fonseca confessava-se um militante moderado do Neo-Realismo doutrinário: «Nunca fui um homem que pensasse no Neo-Realismo senão como eu pensava que ele devia ser realizado. (…) Há outro Neo-Realismo mais simples, como as formas mais altas de ver o mundo, de voar sobre ele, de poder sonhar com ele…»[1]. De facto, no que diz respeito ao amadurecimento e à definição daquilo que seria a disposição do seu projecto enquanto escritor e enquanto ser humano integrado numa sociedade às avessas, Manuel da Fonseca antecipa-se claramente à sua geração.
Emergente de uma atitude de grupo que cultivava «a obstinada recusa a ser feliz num mundo agressivamente infeliz», «a ânsia da dádiva total», ou ainda «o grande sonho de criar uma literatura nova, radicada na convicção de que, na luta imensa pela libertação do homem, ela teria um papel inestimável a desempenhar»[2] o escritor irá desenvolver um percurso muito particular, num ritmo que será o do seu próprio empenho solidário, o da própria pulsação contemplativa, numa luta diligente e infatigável pela defesa dos mais desfavorecidos. Não se trata, no entanto, de uma mera empatia doutrinária pelo oprimido mas antes, conforme José Carlos Barcellos, de uma «fidelidade a uma ética e a uma estética fundamentalmente comprometidas com o humano»[3].
Para tal, Manuel da Fonseca sustenta a sua produção no constante equilíbrio entre o conteúdo e a forma, revogando uma tendência do movimento cuja laboração estética radica, pelo menos teoricamente, na demanda arrebatada pelo triunfo da mensagem ideológica[4]. De outra forma não podia ser, já que, para o autor, realidade, ideia e poesia não existem separadamente, são uma mesma realidade, a única realidade que a sua sensibilidade conhece. E se o seu propósito foi sempre o de, tal como a generalidade da geração, partir da «vida para a ideia»[5], então representá-la (à vida), implicaria necessariamente o recurso à autoridade comunicativa da beleza estética. O seu poder argumentativo reside, aliás, na força desse equilíbrio alimentado em simultâneo pela envergadura do argumento e pela subtileza da sua configuração. A obra de Manuel da Fonseca é assim e, afinal, segundo José Manuel Mendes, seu companheiro de geração, «uma comunicação de beleza», pressuposto que, um pouco na senda de Marx, Lenine e Trotsky, nasce na consciência de que só o belo é detentor da capacidade se fazer ouvir[6].
No entanto, além de poeta do belo, Manuel da Fonseca é também o poeta da verdade. O resultado dessa coesão temática e estilística é, afinal, o sintoma concreto de uma rara lucidez e coerência que se traduzem na advertência da e pela justiça que, tão cara aos neo-realistas, que mais não é afinal do que o exercício da consciencialização, da arte como «polarização cultural decisiva»[7], como alavanca de interpretação e agente de mudança e transformação do real. Neste aspecto, Manuel da Fonseca esteve inteiramente ao lado dos seus companheiros. Não só compreendeu a verdade como o único efeito possível de sinalização do caminho para a libertação, como fez dela a arma de arremesso da sua sensibilidade contra a insensibilidade dos outros, os prepotentes e os ignorantes. É afinal o pressuposto do materialismo dialéctico que encara o homem como objecto e sujeito do processo histórico, o alicerce ideológico do Neo-Realismo, que o autor utilizou à sua maneira, isto é, adaptando-o à sua particular forma de sentir, encarar e enunciar o que o rodeia.
E o que o rodeou foi sempre o Alentejo. Neste âmbito, Armando Ventura Ferreira acrescenta que este contacto intenso com o Alentejo permitiu ao escritor encontrar-se com a confiança e a fé na solidariedade do homem pelo homem[8], pelo que nos resta acrescentar que essa convicção é, afinal, uma forma de genuína resistência relativamente ao estabelecido.
Na sua perspectiva, a elaboração estética deveria assim estar ao serviço da contestação, através da manifestação discursiva, e da sugestão de soluções para os problemas que a realidade social e política conjecturava. Além disso, para o autor, a superação dos paradoxos sociais só poderia acontecer quando o homem compreendesse profundamente as regras de funcionamento do enredo de que fazia parte. E para tal, era preciso fazer uso da palavra, não de uma palavra qualquer mas de uma palavra que se empenhasse seriamente na sua finalidade e que, por si, através da sua própria força discursiva, introduzisse o desarranjo necessário à conversão. Depois disso, o caminho para a libertação estaria aberto."
Sandra Guerreiro Dias
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