Apesar das suas falhas teóricas, a teoria da arte de José Régio tem a seu favor o facto de partir de uma constatação empírica inquestionável: «Quem não vê em Portugal aestreiteza de personalidade dos nossos mais lidos escritores?» A leitura de dois ensaios, um de José Régio (Literatura Viva, 1927), outro de João Gaspar Simões (Individualismo e Universalismo, 1927), é suficiente para mostrar que o "objectivo pedagógico" número 1 do movimento modernista da Presença era denunciar amediocridade dos escritores portugueses e a própria mediocridade provinciana nacional. Todos os pares de categorias contrárias elaborados pelos presencistas visam traçar linhas de demarcação que permitam discernir e separar os simuladoresdos criadores autênticos. Aliás, José Régio afirma mesmo que o verdadeiro papel docrítico literário é discernir e separar estas duas categorias de escritores: Ossimuladores - a fauna pseudo-literária predominante em Portugal! - «existiram em todos os tempos, e são os responsáveis de toda a literatura morta de qualquer tempo. Os segundos - os criadores autênticos - também existiram em qualquer tempo, e é através deles que a arte literária chegou até nós viva, portanto susceptível de evolução. Os processos e as formas que eles descobriram eram os mais aptos a revelar a sua sensibilidade; e por certo foram inovação no seu tempo. É natural que a sensibilidade contemporânea já não caiba nessas fórmulas, consagradas por e para sensibilidades diferentes. Natural é, portanto, que os grandes artistas de hoje sigam o exemplo dos grandes artistas de ontem. O fundo eterno, imutável, contínuo, da humanidade e da arte manter-se-á poderosamente na obra de todos os grandes. E direi que é sobretudo nos inovadores que esse fundo aparecerá mais virgem». Com esta frase, a teoria estética de José Régio torna-se incapaz de historicizar a arte e os seus movimentos artísticos: a história da arte é vista como uma ampliação ou dilatação contínua da humanidade, das suas possibilidades virtuais e do seu mundo, que capta, em cada época, através das suas figuras artísticas geniais, o fundo imortal que define a essência da arte autêntica, actualizando possibilidades virtuais adormecidasalgures nos recônditos da alma humana. Para José Régio, a arte viva é a arte original. E o que é a arte original? A arte original é aquela que brota da «parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é, pois, ter uma personalidade e obedecer-lhe» (José Régio). O tema presencista da originalidade reconduz-nos directamente ao conflito entre o indivíduo e a sociedade, tal como foi explicitado pela primeira vez pela tragédia grega. O carácter individualista da arte vanguardista seduziu os presencistas pelo facto dos seus grandes criadores terem tido a coragem de romper com todas as normas, cânones e espírito de escola que aprisionavam a sua criatividade infantil. A estética que elaboraram para a arte de vanguarda retoma a teoria do génio, dando-lhe no entanto uma outra moldura teórica que João Gaspar Simões foi buscar à teoria dos sonhos de Freud. Reconhecendo as limitações do seu conceito de inocência e virgindade da alma individual, João Gaspar Simões foi obrigado a recorrer à teoria de Freud para mostrar como a alma individual logra emancipar-se da sua cultura, para reagir directa e virginalmente ante oespectáculo do mundo, de modo a reforçar a sua ideia de que a obra mais individual é também a mais universal: «Está claro que o fundamento de toda a criação infantil assenta no repúdio obrado pelo criador sobre a camada cultural adquirida, pois, se tal repúdio se não obrar, impossível lhe será realizar uma obra superiormente original. Mas que função exercerá assim sobre a alma criadora uma cultura que se repudia? Eis-nos diante dum mecanismo idêntico ao revelado por Freud na sua teoria dos sonhos. A cultura não é, na verdade, repudiada, senão recalcada, semelhantemente ao que se passa na nossa consciência com as duas funções criadoras de pensamentos, assinaladas pelo autor da "Psicanálise". Enquanto os produtos duma, desde que elaborados, participam logo da consciência do sujeito, os da outra são precipitados no vasto mar do subconsciente, não chegando até ela senão por intermédio da primeira. Como, porém, entre estas duas funções há uma espécie de censura que impede o livre trânsito de pensamento, só um meio resta àqueles que, recalcados, se acham inibidos de se tornar conscientes - surpreendê-la durante o sono, único instante em que sofre um relaxamento. O que de facto acontece. Todavia, por medida de precaução, recorrem os foragidos ao estratagema de um disfarce, que, em geral, se lhes oferece em forma de símbolos acentuadamente infantis. Donde o aspecto fantástico de quási todos os sonhos. /Ora, o mecanismo da reacção infantil duma alma culta aproxima-se deste, precisamente em que no momento da criação, a inteligência crítica do artista se elege em censora das ideias que, previamente repudiadas, se mantêm à margem, e as quais só logram iludi-la disfarçando-se, quer dizer alterando a sua conformidade própria mercê duma nova, adquirida com elementos da alma em que habitam. /De maneira que uma vez perdida a fisionomia primitiva com que para ela entraram, está ganha uma nova fisionomia, que, por ter sido elaborada com materiais estranhos, em nada se assemelha à primeira, mas sim àquela que caracteriza as criações da alma fornecedora dos materiais. Isto é, houve por assim dizer um rejuvenescimento dos resíduos culturais existentes na consciência do artista, uma infantilização, pois infantil é a fisionomia de todas as criações originais.» Este esclarecimento dado no ensaio Individualismo e Cultura (1927) visava salvaguardar o conceito de virgindade da alma individual - a alma isenta de preconceitos - da interpretação que lhe foi dada - pelos "nacionalistas", os inimigos declarados daPresença - como uma espécie de regresso a uma época pré-histórica da consciência humana. Para João Gaspar Simões, o carácter marcadamente individualista da arte de vanguarda revela-se na emancipação dos artistas e da sua visão do mundo dassujeições de escola. A revolta dos artistas de vanguarda contra o espírito de escola assume assim - nesta perspectiva - a forma de um antagonismo radical entre o indivíduo e a sociedade, ou seja, entre o pensar sincero - próprio das almas superiores - e opensar fraseológico (Ortega y Gasset) - próprio das almas inferiores. Em linguagem bergsoniana, João Gaspar Simões encara o processo de criação artística como o regresso do eu ao seu si próprio - o eu próprio, depois de ter andado perdido no mundo inautêntico do eu social que se limita a ser e a fazer aquilo que todos os outros impessoais são e fazem: a alma superior é aquela que se liberta do seu eu social e do seu sistema pré-fabricado de crenças e de esquemas automáticos adquiridos, censurando-os e criando o seu próprio universo isento de todos os preconceitos culturais e de todas as modas. Ao reassumir o seu eu próprio, a sua feição virginal, através do recalcamento e da censura dos elementos culturais estranhos interiorizados, a alma superior rompe com os automatismos sociais da escola e torna-se capaz derejuvenescer o mundo, comunicando-lhe uma nova visão da realidade e criando uma nova cultura unicamente sedimentada nela. Os conceitos de originalidade esinceridade são usados pelos presencistas para acentuar o carácter individualista do modernismo, por oposição à reacção meramente formalista, insincera e colectiva exibida pelas almas inferiores que se refugiam num automatismo sindical que lhes retira toda a qualidade vital. José Régio e João Gaspar Simões partilham a mesma estética, a mesma teoria da arte, mas cada um deles tende a usar uma terminologia própria que acaba por gerar algumas diferenças de perspectiva. Embora João Gaspar Simões esteja mais próximo de uma perspectiva social da arte, que procurei evidenciar mediante o recurso à linguagem de Bergson - uma figura idolatrada pela Presença e pelo pensamento portuense, o seu conceito de tradição eterna - a matriz a-histórica da estética presencista - garante a integridade do núcleo duro que partilha com José Régio: «Ora é neste poder natural de contínuo renascimento, nesta mocidade insuperável, que reside a virtude universalista das almas individuais. A um acto comum responde uma comum assimilação; sendo curta a vida de toda a obra vulgar, porque a sua trajectória vital descreve uma ínfima curva: mal sai do berço, entra no túmulo (que nesta metáfora significa o fundo da consciência assimiladora); enquanto a individual, a invulgar, se mantém em eterno nascimento, jamais abandonando a alma-matriz que a torna insusceptível de assimilação. (Todos os túmulos permanecem cerrados perante ela.) Daí a universalidade da obra individual fundamentar-se precisamente em que todos os homens a contemplarão e sofrerão o choque humaníssimo da sua vitalidade, sem lograrem sepultá-la em suas tumulares consciências». Este não é o "lugar" para analisar com detalhe histórico-hermenêutico a crítica presencista de alguns escritores portugueses consagrados por críticos literários e por um público cegos que desconhecem o cânone que permite avaliar uma obra de arte. A cegueira estética é a categoria que os presencistas forjaram para condenar os críticos literários e o público que consagram obras de artistas portugueses medíocres, em nome de preocupações de ordem política, religiosa, patriótica, social e ética, todas elas alheias à arte: as expressões utilizadas para denunciar essas obras medíocres - tais como desvirtuar a criação artística, esconder o seu vazio, falta de imaginação psicológica, caricaturas mumificadas dos imitadores, pobreza de personalidade, impotência de criar,estreiteza de personalidade, velhice precoce, esterilização, sonhar ser o que não se é, comodismo, cansaço, insinceridade e tantas outras - reenviam para uma mesma noção: a estreiteza de personalidade de certos artistas portugueses não lhes permite criar obras originais. A densidade psicológica das personagens dos romances de Fiódor Dostoiévski ou a riqueza interior de Marcel Proust são constantemente lembradas por contraste à pobreza psicológica das personagens dos romances portugueses consagrados pelos críticos literários. Em 1935, Adolfo Casais Monteiro publicou um ensaio curioso onde criticava o filme de Leitão de Barros, As Pupilas do Senhor Reitor: «Que é "As Pupilas do Senhor Reitor", romance de Júlio Dinis? Uma simples história aldeã, não muito rica de episódios romanescos, mais descrição de "tipos" do que estudos de caracteres, mas contendo uma acção definida, pondo em relação de interdependência um certo número de seres humanos. Disto, que resta no filme? Onde vemos nós a personalidade às figuras humanas? Quando nos revelam a sua maneira de ser, a sua qualidade individual? Vagos fantasmas, só os distingue a aparência física: dizem duas coisas, choram ou riem, mas sem que o espectador possa compreender porquê». A questão que preocupava deveras a Presença - O que são os portugueses? - tem aqui a sua resposta adequada: Vagos Fantasmas ou, como diríamos hoje,zombies, que choram ou riem sem saber porquê. A concepção da arte como expressão sincera da individualidade artística dirige-se fundamentalmente à condenação da estreiteza de personalidade não só dos artistas portugueses consagrados, mas também dos portugueses em geral. A sinceridade como categoria estética não é uma invenção presencista: ela encontra-se elaborada nalguns dos "manifestos" da arte de vanguarda, nomeadamente no primeiro grande manifesto da poética do expressionismo, o de Hermann Bahr. A arte que grita nas trevas do desespero, pedindo socorro e invocando o espírito, é o expressionismo: o homem privado da sua alma pelo impressionismo volta a reabrir a sua boca para reclamar a expressão sincera da sua alma. Assim, por exemplo, no teatro, Frank Wedekind opôs às convenções, às normas, à respeitabilidade e à mentira da sociedade burguesa, a sinceridade das paixões e a violência dos impulsos primitivos, enquanto que, na poesia, Georg Trakl sublinhou a exigência de fugir à vulgaridade e à dureza da sociedade civil, através do refúgio no "reino inalienável do espírito", onde nenhuma força externa pode penetrar e gerar a desordem. Os expressionistas - sobretudo os membros dos grupos Die Brücke (A Ponte) e Blaue Reiter(Cavaleiro Azul) - gritavam contra a realidade social que privava o homem da sua alma: eles liam O Capital de Karl Marx. O carácter individualista da arte - o resgate da alma - reclamado por Stirner realiza-se e consuma-se na arte de vanguarda. A estética presencista esteve, pois, à altura dos tesouros do seu século, quando procurou restituir a alma ao homem lusitano, mas o seu grito esbarrou contra a surdez e a cegueira dos portugueses. A fatalidade de ser homem português silencia todos os nossos gritos de protesto contra o espírito insincero de manada predominante nestas terras inóspitas portuguesas. O movimento cultural que girou em torno da Presença ansiava pelamodernização de Portugal. Mas como se pode modernizar a cultura e amentalidade portuguesa sem transformar radicalmente as condições de existência social dos portugueses? Para educar, os educadores precisam, eles próprios, ser educados: a educação para a liberdade e para a autonomia ocorre ao mesmo tempo que se transformam as estruturas e as condições sociais que bloqueiam o desenvolvimento mental e cognitivo dos portugueses. Revolução cultural e revolução social - sim, Portugal ainda não realizou realmente a sua revolução! - implicam-se reciprocamente. Ainda hoje - mais de trinta anos depois do 25 de Abril de 1974 - podemos escutar o eco do Grito da Presença: É preciso dar uma alma notável aos portugueses!
J Francisco Saraiva de Sousa
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