domingo, 23 de outubro de 2016

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OPINIÃO
Primeiro os ciganos, agora os doentes


FRANCISCO LOUÇÃ

22/10/2016 - 02:20







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TÓPICOS

Governo
Orçamento do Estado
Pensões
Segurança Social
questões sociais


Lembra-se do tempo de antena do CDS em que um cigano mal encarado espiava uma criança que ia para a escola? A estratégia era brutal e era todo um programa. Depois disso tivemos outras versões da mesma política, apontando os males da sociedade a um culpado difuso, para assim justificar alguma discriminação ou simplesmente uma jogada eleitoral. O momento culminante desse estratagema foi a denúncia do RSI, que albergaria um conjunto suspeitíssimo de fraudes.

Com o apoio de um jornal que dava voz às queixas sobre o Mercedes que, como todos bem sabemos, está à porta de cada família que recebe RSI, o CDS foi singrando no ataque ao que era então a única medida de combate à pobreza e que, sensatamente, punha como condição que os filhos dos beneficiários de algumas dezenas de euros estivessem na escola. O PS amedrontou-se e fomos tendo cedência atrás de cedência – o síndrome do cigano suspeito.
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Agora temos direito a mais uma reprise deste filme. O novo alvo do CDS são os doentes. Como quem não quer a coisa, Mota Soares apontou o tiro: para um aumento das pensões mínimas não contributivas até sei onde se vai buscar o dinheiro, tira-se do subsídio que é pago aos doentes, acrescentou, como nas letras pequeninas de um contrato. Tira-se 50 milhões, assim do pé para a mão, tudo isso é o valor da fraude. Porque ele fez as contas? Não, é uma fezada, ele acha que um em cada dez doentes é um fingidor. Ele, que foi ministro todo poderoso durante quatro anos, investigou, mandou punir os abusos? Nada. De facto, este sistema, para o qual o doente descontou sempre que trabalhou, é controlado, pois a baixa exige uma declaração médica que é verificável (e são punidos os médicos que não forem rigorosos). Mas Mota Soares acha que os doentes são malandros: um em cada dez. E portanto, saem 50 milhões.

Suponho que Mota Soares precisava mesmo de ser nomeado para este tiro ao alvo. Quanto mais se agitar agora sobre os aumentos de pensões, melhor será a sua chance de apagar das memórias dos pensionistas o que lhes fez durante quatro anos. Mota Soares é o homem que cortou o abono de família, que reduziu o subsídio de desemprego e a indemnização por despedimento, que impôs dias de trabalho gratuitos tirados das férias e dos feriados, que impôs mais cinco horas semanais gratuitas no Estado, que eliminou o descanso compensatório por trabalho suplementar, que aprovou os cortes nas pensões nominais. É o homem que não hesitou perante nada para cortar pensões, aprovando Orçamentos inconstitucionais precisamente pela sua crueldade contra os mais idosos. Ele, que em quatro anos só aumentou pensões sociais e rurais ou as que tinham curtas carreiras contributivas, esquecendo os que contribuíram mais de 15 anos no regime geral e que têm pensões abaixo dos 275 euros, ele, que pagou estes aumentos tirando aos mais pobres e cortando no Complemento Solidário para Idosos e noutras pensões, ele, que prometia tirar mais 2400 milhões de euros às pensões até 2019, acordou agora para a vez dos doentes, os novos ciganos e malandros do RSI. É botar com eles na rua, fraudulentos.

Tudo isto em nome de um medo da direita: é que aumentarão mesmo em dez euros as pensões de 1,6 milhões de pessoas e 80% dos pensionistas terão a pensão aumentada. E as pessoas, que percebem a diferença, não se esquecem do que foi o susto dos anos de Passos Coelho, Assunção Cristas e Mota Soares no governo. É uma questão política escaldante para a direita.

Mas é muito mais do que uma questão política. É uma vitória da sociedade. Uma democracia responsável é assim: usa o que tem para melhorar a vida de quem merece esse respeito.

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