domingo, 28 de fevereiro de 2016

AINDA...E SEMPRE, O NAZI-FASCISMO! (in www.publico.pt)


Sonderkommando: a morte entranhada na pele


ANTÓNIO ARAÚJO

25/02/2016 - 20:55


Só eles lidavam com os mortos, só eles dominavam o processo de “tratamento” das vítimas: acompanhá-las enquanto se despiam, revistar os seus pertences e haveres, conduzi-las ordeiramente às câmaras de gás, aguardar os dez a 12 minutos de gritos horríveis e de agonia.Por ter como protagonista um Sonderkommando, o filme de László Nemes poderá reacender a controvérsia sobre o papel desses homens no Holocausto. Géza Röhrig, que se estreia no cinema com uma actuação memorável, já foi questionado se os Sonderkommandos não teriam sido “meio vítimas, meio carrascos”, o que provocou a ira de alguém cuja trajectória familiar se cruza com o Holocausto




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Houve de tudo, ali. Gente que se lançou contra a cerca electrificada, na ânsia de uma morte imediata; outros que tentaram suicidar-se ainda no comboio, cortando as carótidas com lâminas de barbear; mães que julgaram ser capazes de se esconder, e aos seus filhos, fugindo para perto dos crematórios fumegantes; homens que vasculharam a boca de cadáveres hirtos em busca de ouro para os cofres do Reich.

Auschwitz-Birkenau ilude todos os limites da verosimilhança. Era até possível sair vivo de uma câmara de gás, após dez longos minutos a inalar Zyklon B, no meio de um amontoado pastoso de cadáveres, fezes e urina. Aquilo que dá o mote a O Filho de Saul – uma criança que sobrevive ao gás, morrendo minutos depois às mãos de um médico nazi – aconteceu realmente em Auschwitz, a crer no testemunho de Shlomo Venezia, o mais completo relato que existe sobre a actividade dos Sonderkommandos nos campos de extermínio. Na entrevista que concedeu a Béatrice Prasquier (e que se encontra publicada entre nós com o título Sonderkommando, Lisboa, 2008), Venezia conta que, um dia, um dos homens encarregados de retirar os cadáveres das câmaras de gás ouviu um ruído estranho. Escutar barulhos estranhos não era surpreendente, já que os corpos das vítimas continuavam a libertar gás muito depois da morte. Aquele som, todavia, era diferente, quase inaudível. Shlomo Venezia e outros Sonderkommandos aproximaram-se do local de onde provinham os gemidos ténues, e encontraram atónitos uma menina de dois meses, ainda agarrada ao seio materno, que tentava chupar em vão. Provavelmente, foi isso que lhe salvou a vida: a força da sucção no seio da mãe terá limitado a absorção do gás mortal pela criança. Os homens do Sonderkommando retiraram-na da câmara de gás, mesmo sabendo ser impossível manter uma bebé junto deles por muito tempo. De facto, logo que viu a menina, um guarda ergueu a espingarda e disparou, matando-a numa fracção de segundo.



Filip Müller



O caso de Filip Müller, que esteve três anos no “comando especial” e sobreviveu a cinco vagas de “transferências”, é singular, tão raro que serve de subtítulo às suas memórias: Eyewitness Auschwitz: Three years in the gas chambers(1979) — aqui, Filip numa imagem deShoah, de Claude Lanzmann




O gesto do guarda das SS não surpreendeu Shlomo Venezia nem os outros Sonderkommandos. O que os tinha espantado era a sobrevivência milagrosa de um ser humano nas câmaras de gás. A morte, essa, fazia parte da sua rotina diária, estava-lhes entranhada na pele – e no espírito. Mais do que isso, era para trabalhar com os mortos que ali estavam, isolados no “comando especial”, sem contacto com os outros presos, até chegar a altura em que alguém decidisse que era tempo de os substituir. Entre milhares de detidos, só eles lidavam com os mortos, só eles dominavam o processo de “tratamento” das vítimas: acompanhá-las enquanto se despiam, revistar os seus pertences e haveres, conduzi-las ordeiramente às câmaras de gás, aguardar os dez a 12 minutos de gritos horríveis e de agonia. Depois, por entre dejectos e um terrível odor acre, havia que retirar dali os corpos esfacelados, muitos deles com os olhos saídos das órbitas devido ao tremendo esforço feito pelo organismo na busca sôfrega de oxigénio; em seguida, havia que cortar-lhes os cabelos e extrair-lhes os dentes de ouro e as próteses, e colocá-los no monta-cargas rumo ao piso de cima, onde eram incinerados. O chão era constantemente aspergido, como se vê em O Filho de Saul, para facilitar que os cadáveres deslizassem enquanto eram puxados, do mesmo modo que as placas dos fornos eram permanentemente molhadas com água para que a pele dos corpos não ficasse agarrada ao ferro escaldante. Enquanto isso, outros Sonderkommandos alimentavam as fornalhas com carvão e, no final, transportavam o amontoado de cinzas para ser lançado no Vístula, sem deixar rasto nem vestígios (os nazis chegaram a organizar um horripilante comércio com os familiares das vítimas, vendendo-lhes urnas que supostamente guardavam os restos dos seus parentes, quando, na verdade, continham um punhado de cinzas apanhadas ao acaso). Alguns ossos, como os da bacia, queimavam mal, resistiam ao crematório; os Sonderkommandos tinham de os triturar antes de serem misturados com as cinzas. Em jornadas de trabalho de 12 horas, com turnos de dia e de noite, em laboração contínua, também escavavam as valas para onde outras vítimas eram levadas e, em fila indiana, baleadas na nuca, caindo sobre as labaredas e os corpos calcinados (as fossas eram capazes de queimar mil pessoas numa hora). No fundo das valas, havia que ter cuidado para que o fogo não se apagasse, pelo que se construiu um canal que recolhia a gordura libertada pelos corpos em chamas e depois usada como combustível ou acendalha. Noutros casos, competia-lhes segurar a cabeça da vítima para que o soldado das SS a abatesse, guardando uma distância suficiente de modo a que os estilhaços do crânio ou o sangue que jorrava não atingissem o assassino. “O facto de ficar sujo incomodava o alemão”, diz Shlomo Venezia.

A zona cinzenta
Ninguém escolhia entrar no “comando especial”; e sair, menos ainda. Os Sonderkommandos eram regularmente substituídos, sendo mortos os que já não serviam por falta de forças ou pela necessidade de eliminar todos quantos conhecessem o maior dos segredos dos campos, o interior das câmaras de gás. Nem sequer aos guardas SS “não iniciados”, que ignoravam os gaseamentos e os crematórios, os Sonderkommandos podiam dizer o que faziam. Não por acaso, os membros dos Sonderkommando eram apelidados de “portadores de segredos” (Geheimnisträger). Manter as vítimas na ignorância era a melhor forma de assegurar que a morte em massa se desenrolaria com a cadência adequada, a uma escala industrial sem falhas nem contratempos. Existe uma estranha procura de assepsia num ambiente carregado de mortes e

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