quarta-feira, 5 de outubro de 2016

NOTA PESSOAL, seguida de um texto de Antero de Quental


Maria Elisa Ribeiro
Agora mesmo ·



No seu discurso ,nas "Conferências do Casino"onde os jovens de Coimbra tentavam impor a entrada do Movimento Realista, em Portugal, Antero apontava três causas para o atraso de Portugal, em relação à Europa ( de Portugal e de Espanha!).Este discurso deu-se no dia 27 de Maio de 1871,na sala do Casino Lisbonense.
O discurso é muito longo, pelo que só escolhi o texto onde Antero se refere a essas três causas.
Hoje, Dia da Implantação da República em Portugal, que se deu em 5 de Outubro de 1910,convém ,mais que nunca recordá-las e não deixar de ler o discurso, por completo. Hoje, como ontem, como SEMPRE, acho que essas três causas continuam interligadas às nossas actuais feridas.

(Maria Elisa Ribeiro-5 de Outubro de 2016)










..."Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.

Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião.

Da decadência moral é esta a causa culminante! O catolicismo do Concílio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso: mas organizou-o duma maneira completa, poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o catolicismo, na sua forma definitiva, imobilizado e intolerante, data do século XVI. As tendências, porém, para esse estado vinham já de longe; nem a Reforma significa outra coisa senão o protesto do sentimento cristão, livre e independente, contra essas tendências autoritárias e formalísticas. Essas tendências eram lógicas, e até certo ponto legítimas, dada a interpretação e organização romana da religião cristã: não o eram, porém, dado o sentimento cristão na sua pureza virginal, fora das condições precárias da sua realização política e mundana, o sentimento cristão, numa palavra, no seu domínio natural, a consciência religiosa. É necessário, com efeito, estabelecermos cuidadosamente uma rigorosa distinção entre cristianismo e catolicismo, sem o que nada compreenderemos das evoluções históricas da religião cristã. Se não há cristianismo fora do grémio católico (como asseveram os teólogos, mas como não podem nem querem aceitar a razão, a equidade e a crítica), nesse caso teremos de recusar o título de cristãos aos luteranos, e a todas as seitas saídas do movimento protestante, em quem todavia vive bem claramente o espírito evangélico. Digo mais, teremos de negar o nome de cristãos aos apóstolos e evangelistas, porque nessa época a catolicismo estava tão longe do futuro que nem ainda a palavra católico fora inventada! É que realmente o cristianismo existiu e pode existir fora do catolicismo. O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina. Toda a história religiosa, até ao meado do século XVI, não é mais do que a transformação do sentimento cristão na instituição católica. A Idade Média é o período da transição: há ainda um, e o outro aparece já. Equilibram-se. A unidade vê-se, faz-se sentir, mas não chega ainda a sufocar a vida local e autonómica. Por isso é também esse o período das igrejas nacionais. As da Península, como todas as outras, tiveram, durante a Idade Média, liberdades e iniciativas, concílios nacionais, disciplina própria, e uma maneira sua de sentir e praticar a religião. Daqui, dois grandes resultados, fecundos em consequências benéficas. O dogma, em vez de ser imposto, era aceite, e, num certo sentido, criado: ora, quando a base da moral é o dogma, só pode haver boa moral deduzindo-a dum dogma aceite, e até certo ponto criado, e nunca imposto. Primeira consequência, de incalculável alcance.

O sentimento do dever, em vez de ser contradito pela religião, apoiava-se nela. Daqui a força dos caracteres, a elevação dos costumes. Em segundo lugar, essas igrejas nacionais, por isso mesmo que eram independentes, não precisavam oprimir. Eram tolerantes. A sombra delas, muito na sombra é verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam Judeus e Mouros, raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções duma calamidade nacional. Segunda consequência, de não menor alcance do que a primeira. Se a Península não era então tão católica como o foi depois, quando queimava os judeus e recebia do geral dos Jesuítas o santo e a senha da sua política, era seguramente muito mais cristã, isto é, mais caridosa e moral, como estes factos o provam."...

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