quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Opinião de José Vitor Malheiros, in www. publico.pt


OPINIÃO
A laicidade não permite leis especiais para certas religiões


JOSÉ VÍTOR MALHEIROS

30/08/2016 - 00:10


Os cabos-de-mar devem obrigar as jovens de burquini a despir-se e multá-las por não exibirem as pernas e os seios?




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Imaginem a avó Idalina, com os seus 96 anos, na praia, vestida com a sua saia preta comprida, a sua camisa cinzenta de manga comprida, o seu lenço na cabeça e a refrescar-se dos calores estivais nas águas do Atlântico sem tirar nenhum daqueles atavios. Uma figura algo ridícula, a merecer caretas de desaprovação dos outros veraneantes, risadas dos miúdos e umas fotografias à distância para partilhar nas redes sociais. No entanto, nada disso dissuade a senhora, que tem calor e quer refrescar-se, apesar de ter pudor em mostrar o corpo e não querer mostrar o cabelo escasso em desalinho.

A pergunta é: visto que a indumentária da avó Idalina nos parece desapropriada para a época e para o lugar, em dissonância com a moda do tempo, contrária ao nosso gosto pessoal e pouco prática para a própria, deve a lei impor-lhe o uso de trajes mais leves, que permitam maior liberdade de movimentos e sejam mais reveladores do corpo?

Não deve. Por imprópria que a indumentária nos pareça para a prática de banhos de mar, a avó Idalina não prejudica ninguém com a sua roupa e, se a lei tentasse proibir tudo o que, na sua opinião, ofende o bom gosto, abriríamos a porta à mais absoluta arbitrariedade. O direito a vestirmo-nos como queremos foi conquistado ao longo de séculos e faz hoje parte das liberdades adquiridas, sendo limitado por aquilo que a lei em cada momento define como os bons costumes (é proibido andar nu pelas ruas da cidade), uma noção que, com altos e baixos, tem evoluído no sentido da tolerância, tentando permitir que a escolha da roupa que usamos seja mais uma dimensão na nossa expressão e liberdade individual.

Imaginemos agora que, em vez da avó Idalina, católica, apostólica romana e devota, está na mesma praia, quase exactamente com a mesma indumentária, a que chamamos nestes casos um burquini, uma jovem muçulmana, igualmente a banhos.

Aqui, o caso muda de figura. O burquini é uma imposição indumentária que as autoridades (sempre masculinas) de certas variantes do Islão infligem às mulheres; é um símbolo da submissão das mulheres aos homens; é um símbolo público de dominação das mulheres através do controlo daquilo que existe de mais pessoal, o seu próprio corpo. O burquini é algo que, na sua essência, é contra os valores da liberdade e da igualdade que são centrais à república e deve ser condenado e combatido, como o foi o espartilho vitoriano ou a ligadura dos pés na antiga China.

Mas será então que, no caso da nossa jovem muçulmana, ao contrário do que acontecia nas nossas praias durante o Estado Novo, o cabo-de-mar deverá ir obrigá-la a despir-se e multá-la por não exibir as pernas e os seios? É evidente que não, porque a lei deve ser igual para todos e não se pode permitir à avó Idalina o que se proíbe à jovem muçulmana apenas por a primeira ser católica e a segunda não. A lei não pode permitir ou proibir um dado comportamento com base na religião de quem o pratica, porque essa discriminação seria uma odiosa iniquidade. A utilização de um critério religioso para avaliar a licitude ou ilicitude de um acto é algo que uma república laica, por definição, não pode fazer — ainda que a laica república francesa, pela mão de alguns mairesreaccionários e racistas esteja a tentar fazer.

O mesmo problema foi suscitado há uns anos em França em relação ao uso do lenço islâmico, que certas escolas públicas proíbem às alunas por se tratar de “um símbolo religioso”. O problema é que isso obriga a perguntar a cada aluna: “Desculpe, a menina traz este lenço porque é muçulmana e quer fazer propaganda da sua religião num espaço público, o que não é permitido por lei, ou porque é fã da Monica Vitti e gosta de imitar a sua maneira de vestir? Se for o primeiro caso, vou ter de lhe pedir que tire o lenço.”

O Estado laico republicano não pode ser parte activa no combate ou promoção de práticas religiosas que não infrinjam leis da república, apenas porque são desta ou daquela religião, em nome da neutralidade que garante a liberdade religiosa (e a de não ter religião) de todos os cidadãos.

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