"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
CIÊNCIA:
Enzima do fígado humano vista pela primeira vez a 3D por cientistas portuguesas
CATARINA ROCHA
01/09/2015 - 08:30
O fígado é determinante para a eficácia de muitos medicamentos. A estrutura de uma proteína que aí existe, central precisamente na transformação dos fármacos, foi agora revelada – átomo a átomo.
Modelo tridimensional da enzima AOX
UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
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É uma enzima do fígado humano que tem especial importância para o metabolismo de vários fármacos. Chama-se aldeído oxidase (AOX) e foi agora pela primeira vez vista a três dimensões por uma equipa de investigadoras portuguesas. A descoberta da estrutura desta proteína com mais de dez mil átomos foi publicada na segunda-feira na revista Nature Chemical Biology, e é um contributo para o desenvolvimento de novos medicamentos, tornando-os mais eficazes e diminuindo o seu custo.
Esta proteína de acção catalisadora intervém num grande número de reacções de metabolismo de medicamentos no fígado humano, mas alguns desses processos não são ainda bem conhecidos e previsíveis. O fracasso de uma grande parte dos ensaios clínicos feitos pelas empresas farmacêuticas deve-se à dificuldade de saber se determinada molécula será ou não metabolizada pela AOX, isto porque até agora se desconhecia a sua estrutura.
Para além deste obstáculo, há ainda o problema dos modelos animais adequados. O número de enzimas AOX difere consoante a espécie: os roedores têm quatro formas diferentes desta enzima, enquanto os humanos apresentam apenas uma. Assim, torna-se difícil encontrar um modelo adequado para estudar e prever o metabolismo da AOX no fígado humano. A equipa da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (UNL) coordenada por Maria João Romão, que trabalha a enzima AOX há oito anos, centrou os seus primeiros estudos na enzima dos ratos, e saltou para a enzima humana neste último estudo.
Cristais por correio
Para determinar a estrutura 3D da AOX humana e poder visualizar os seus mais de 1330 aminoácidos, as investigadoras tiveram de cristalizar a enzima e submete-la a raios X. “Devido ao seu grande tamanho, usámos a cristalografia de raios X para determinar a estrutura 3D da enzima e poder ‘ver’ o complicado arranjo dos aminoácidos entre si”, explica Catarina Coelho, da equipa de Maria João Romão, que inclui ainda Teresa Santos Silva. “Apenas quando conseguimos localizar as posições da maioria dos mais de dez mil átomos é que pudemos correlacionar a estrutura com a função [da proteína] e tirar conclusões acerca dos mecanismos enzimáticos e de inibição”, acrescenta Catarina Coelho, citada num comunicado da instituição.
A bactéria Escherichia coli foi o organismo escolhido para produzir a enzima em quantidade suficiente para ser cristalizada. A equipa colaborou com cientistas da Universidade de Potsdam, na Alemanha, devido à especificidade da Escherichia coli – porque algumas moléculas “ajudantes” (cofactores) necessárias para a activação da enzima não são facilmente sintetizadas pela bactéria.
“Já tinha sido desenvolvida em Inglaterra uma estirpe de Escherichia coliespecífica para a produção de proteínas com os cofactores”, explica ao PÚBLICO Maria João Romão. “Os nossos colaboradores na Alemanha optimizaram a expressão da AOX neste sistema, de início para a enzima de rato e posteriormente para a forma humana. Este trabalho já vinha a ser desenvolvido há vários anos pelo grupo inglês, mas foi agora optimizado.”
Todo este trabalho de produção e purificação da proteína, garante Maria João Romão, poderia ter sido feito em Portugal. “Mas a distribuição de tarefas com outros grupos permitiu-nos ser mais rápidos, eficazes e competitivos, quer a nível nacional quer a nível mundial, tanto para a obtenção de resultados como de financiamento.”
Depois sintetizada a proteína, passou-se às cristalizações. A equipa produziu mais de 800 cristais, que depois foram submetidos a intensos raios X, em máquinas chamadas “sincrotrões”, para se efectuarem as medições e determinar-se a estrutura da proteína. O Laboratório Europeu de Radiações Sincrotrão (em França), o Diamond Light Source (no Reino Unido) e o Swiss Light Source (na Suíça) foram os escolhidos para este trabalho. “Precisámos de mais de 40 viagens até ao sincrotrão e de muitas noites em claro, até que obtivéssemos dados de boa qualidade dos cristais AOX”, contam, citadas no comunicado, Catarina Coelho e Teresa Santos Silva.
Para levarem os cristais até aos laboratórios sincrotrão, a equipa congelou-os em azoto líquido e enviou-os por correio urgente. “Com as restrições actuais das companhias aéreas após o 11 de Setembro, deixou de ser possível transportar os cristais connosco no avião. Podem ser enviados no porão, mas já aconteceu ficarem retidos sem aviso e não chegarem a tempo e, nesse caso, toda a experiência ficou comprometida”, diz Maria João Romão.
A cada pessoa a sua reacção
Agora que foi determinada a estrutura 3D da enzima, a compreensão das suas complexidades é um objectivo próximo. Uma delas é variabilidade da enzima em humanos, que foi primeiramente identificada em 1999. Estas variações chamam-se polimorfismos de nucleótidos simples e são pequeninas alterações normais nas sequências de ADN, neste caso da AOX. Mas para além disto, pensa-se que factores como o género, a idade, a utilização de drogas ou o fumo do cigarro possam ser responsáveis por variações da enzima. E agora com o conhecimento da sua estrutura, espera-se uma melhor compreensão do seu modus operandi.
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