quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Sobre o estado islâmico e não só...


“Dizer que estes fanáticos nada têm a ver com o Islão é o cúmulo do politicamente correcto e é contraproducente”


ANA GERSCHENFELD

27/01/2015 - 10:46


O Corão está na base do terrorismo jihadista, como dizem alguns? Ou será que os sangrentos atentados perpetrados por jihadistas nada têm a ver com o Islão, como afirmam outros? Quem são os “muçulmanos moderados”? O que é a “comunidade muçulmana” de que tanto se tem falado nas últimas semanas? Estes clichés têm gerado muita confusão na opinião pública ocidental. Mas há cientistas que tentam perceber as raízes profundas do terrorismo para além das ideologias subjacentes.


Scott Atran esteve várias vezes em Damasco, na Síria, antes do início da guerra civil, em 2011 RICHARD DAVIS/ARTIS RESEARCH

Scott Atran (62 anos), antropólogo e psicólogo do Instituto Jean Nicod, em Paris, e da Universidade do Michigan (EUA), quer desvendar as raízes do terrorismo recorrendo à metodologia científica. Tem entrevistado e realizado experiências de psicologia envolvendo colonos israelitas, refugiados palestinianos, líderes do Hamas e grupos islâmicos radicais do Paquistão e da Indonésia – tendo colocado muitas vezes a sua vida em perigo em nome da ciência. O seu último livro, Talking to the Enemy: Faith, Brotherhood, and the (Un)Making of Terrorists, publicado em 2010, tem por base esse trabalho. Na sequência dos atentados perpetrados em Paris em Janeiro, contra o semanário Charlie Hebdo e um supermercado kosher, o PÚBLICO pediu-lhe para esclarecer uma série de questões e alguns mal-entendidos que o terrorismo jihadista tem vindo a reavivar, em relação às populações e à religião muçulmanas, na opinião pública dos países ocidentais.

A religião islâmica conduz ao terrorismo?
Podemos dizer que existe hoje uma corrente violenta e brutal dentro do Islão que inspira o terrorismo.

O ódio do “outro” é inerente ao Corão?
Sim, tal como ao judaísmo e ao cristianismo. Mas a relação entre crença religiosa e acção depende totalmente da maneira como essa crença é interpretada e por quem. E pode ir do apoio absoluto e do sacrifício em nome da guerra ao apoio absoluto e do sacrifício em nome da paz.

Mas os muçulmanos estão menos abertos à crítica do que outras pessoas?
Os muçulmanos são geralmente tão abertos ao mundo judaico-cristão ocidental quanto o mundo judaico-cristão ocidental o é ao mundo muçulmano. Com uma diferença: conhecem melhor a história do Ocidente porque ela lhes foi imposta.

Mesmo os chamados peritos do contra-terrorismo – já para não falar dos políticos, do público e da imprensa ocidentais – não sabem quase nada da história muçulmana nem de tudo o que ela significa: quem conhece uma única das centenas de histórias sobre os quatro primeiros califas? O paternal Abu Bakr, o gigante Omar (doce excepto com os seus inimigos), o multimilionário Otman e o devoto e corajoso Ali? É como dizer que nunca ouvimos falar de Napoleão ou de Abraham Lincoln…

Mas a actividade jihadista leva muitas pessoas a pensar que os muçulmanos são mais dados a cometer actos de terror que os crentes de outras religiões. É assim?
A maioria dos muçulmanos com quem falei não apoia a violência do Estado Islâmico (EI) ou da Al-Qaeda. Mas considera cada vez mais seriamente a ideia de um califado. “Talvez uma federação de povos muçulmanos, como a União Europeia”, como me disse um imã.

Acha que o Islão ainda não se reconciliou com a secularidade e a modernidade – ao contrário, por exemplo, da Igreja Católica?
Se estamos a falar da secularidade e da modernidade ocidentais, é certo que não o fez. Mas já houve uma era reformista no Islão, entre finais do século XIX e a Guerra dos Seis Dias em 1967. E o reformismo “reacendeu-se” durante a Primavera Árabe. Contudo, este movimento não se conseguiu organizar politicamente e nunca estabeleceu pontes com as massas religiosas, rurais e urbanas de trabalhadores pobres.

O seu trabalho tenta perceber as raízes do terrorismo. Como se faz uma “experiência científica” com grupos jihadistas?
Não temos grandes amostras de jihadistas. Portanto, temos de realizar entrevistas de fundo no terreno e, se possível, experiências muito controladas. E para o fazer, temos de convencer os jihadistas a pousarem as armas, a não falarem uns com os outros nem a qualquer líder que estiver por perto e a responder às nossas perguntas sem discutir.

Quando ganhamos suficientemente a sua confiança para fazer isto, eles comportam-se como estudantes e fazem o que lhes pedimos.

Claro que há certas perguntas que não é possível fazer. Não podemos perguntar se abdicariam da sua fé em Deus ou se mudariam de política ou de religião em troca de uma dada quantia de dinheiro... Aí, arriscávamo-nos a levar um tiro.

O seu trabalho é perigoso?
Às vezes. Tenho o cuidado de combinar os encontros de antemão, mas quando um exaltado que não me conhece de sítio nenhum aparece inesperadamente, em geral preciso de sair rapidamente de cena.

Uma vez, tive de me esconder numa mesquita dos Lashkar-e-Taiba [uma das maiores organizações terroristas] em Rawalakot (Caxemira Livre) para fugir de uns tipos dos serviços secretos paquistaneses que estavam a tentar acabar comigo para me impedir de relatar um massacre numa aldeia.

Noutra ocasião tive de saltar pela janela de uma casa de banho e esconder-me na selva. Foi em Poso Sulawesi, uma ilha indonésia entre Bornéu e Nova Guiné, que na altura era uma confusão de grupos jihadistas a combater cristãos. Um dos comandantes jihadistas tinha acabado de saber que eu era judeu e um dos meus amigos dentro da organização enviou-me um SMS a dizer que estavam a planear matar-me depois do pôr do Sol.

Mas estas situações são raras. Normalmente, só temos de lidar com os ocasionais bombardeamentos do costume.

Qual foi a principal conclusão do seu trabalho?
A de que uma combinação de valores sagrados e de fusão identitária pode produzir aquilo a que eu chamo “actores devotos”, por oposição a “actores racionais”.

Desde a segunda guerra mundial, os analistas militares norte-americanos têm atribuído o espirito de combate [das tropas] à liderança e considerado que as manifestações de camaradagem no combate são uma manifestação racional de interesse pessoal.


"O jihadismo, tal como o nazismo, é motivado por um sentido muito real de virtude moral."

Mas o nosso trabalho mostra que a devoção incondicional a uma causa sagrada, aliada a um compromisso incondicional com os camaradas, pode levar os elementos de um grupo a fazer sacrifícios extremos, totalmente desproporcionados em relação às suas perspectivas de sucesso.

Quais são as motivações dos terroristas que cometem atentados como os de Paris?
Aventura, glória, importância. Trata-se na maior parte de jovens adultos numa fase de transição na sua vida – estudantes, imigrantes, pessoas entre dois empregos ou duas relações sentimentais – que abandonaram a família onde nasceram e estão à procura de uma nova família de amigos e de companheiros de viagem que possam dar sentido às suas vidas. E aqueles que vivem nas franjas da sociedade são particularmente vulneráveis ao canto da sereia jihadista.

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