sábado, 24 de janeiro de 2015

Excerto da obra "Os Maias", de Eça de Queiroz









Excerto da obra "Os Maias", de Eça de Queiroz , in Net



..."O Ramalhete"...



A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I : com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar−se−ia a um colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo de Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma data.


Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo−se de tons de ruína. Em 1858, Monsenhor Buccarini, Núncio de Sua Santidade, visitara−o com ideia de instalar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edifício e pela paz dormente do bairro : e o interior do casarão agradara−lhe também, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus hábitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as águas de um jardim de luxo e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque entulhado, e uma estátua de mármore (onde Monsenhor reconheceu logo Vénus Citereia) enegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. Além disso, a renda que pediu o velho Vilaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Igreja nos tempos de Leão X. Vilaça respondeu – que também a nobreza não estava nos tempos do senhor D. João V. E o Ramalhete continuou desabitado. Este inútil pardieiro (como lhe chamava Vilaça Júnior, agora, por morte de seu pai, administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadarem as mobílias e as louças provenientes do palacete de família em Benfica, morada quase histórica, que, depois de andar anos em praça, fora então comprada por um comendador brasileiro. Nessa ocasião vendera−se outra propriedade dos Maias, a Tojeira ; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração eles viviam retirados na sua quinta de Santa Olávia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Vilaça se essa gente estava atrapalhada.
– Ainda têm um pedaço de pão – disse Vilaça sorrindo – e a manteiga para lhe barrar por cima.



Eça de Queirós, « Os Maias» , cap. I

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