sábado, 24 de setembro de 2016





OPINIÃO
Eu, zelota da privacidade


JOSÉ PACHECO PEREIRA

24/09/2016 - 00:11


A última coisa de que precisamos é que livros abjectos se tornem vulgares, aceitáveis, e impunes. Cá por mim, sou um zelota desse combate.




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TÓPICOS

Privacidade
Internet
questões sociais
liberdade de imprensa
crime, lei e justiça


No seu editorial de anteontem, a propósito do abjecto livro de Saraiva, o PÚBLICO resolve fazer um daqueles exercícios salomónicos que infelizmente ajudam, do meu humilde ponto de vista, sempre os infractores, criando um falso equilíbrio entre dois lados de uma questão, como se houvesse neste caso excessos equivalentes numa matéria tão delicada como é a privacidade. Refere, em contraponto a Saraiva, aquilo a que chama os “zelotas da privacidade” e como eu não conheço muitos, não me importa de enfiar a carapuça. Sim, sou um zelota da privacidade e todos os dias fico mais zelota, porque o contínuo ataque à privacidade e mesmo, como é este caso, à intimidade, o hábito de a violar sem consequências, a emergência de uma cultura da exposição pública, e a indiferença com que se aceita que privados e estados a violem, é para mim muito preocupante como tendência do futuro. O que está em causa é a liberdade e um difícil e pelos vistos muito frágil direito à privacidade, um dos elementos básicos dessa liberdade que demorou quase 200 anos a conquistar, e mesmo assim só para muito poucos.

A primeira das objecções quanto a falar-se deste abjecto livro é garantir-lhe a publicidade e, de facto, custa-me ter que o fazer. Mas admito que o mal já está feito e não tenho dúvida de que uma multidão de “saraivinhas” lá irá espreitar pelo buraco de fechadura da capa naquilo que é, mais do que voyeurismo, onanismo sem disfarce. Bom proveito, até porque tem o patrocínio de um responsável de um jornal e de um ex-primeiro-ministro, candidato a voltar a sê-lo, que aceitou dar-lhe caução pública, pelos vistos sem o ler. Duvido muito que tenha sido assim, tanto mais que a referida pessoa, que já tinha dito que lera na sua adolescência um livro de Sartre que não existia, reiterara a sua vontade e determinação irrevogáveis de apresentar o livro de Saraiva quando o seu conteúdo com detalhes mais picantes (por exemplo sobre um seu antigo membro do governo) já estava exposto por todos os lados – e ele lê jornais. Oh se lê! – veio depois mentir dizendo que apenas tomara a decisão de não apresentar este livro depois de o ler. Assustou-se com as reacções e recuou, mas os estragos já estavam feitos quanto à sua pretensão de ter “sentido de Estado”. Como já tive ocasião de dizer: pobre bandeira na lapela que é levada para sítios mal frequentados.
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Acrescento mais: que não me venham com a vitimização do autor e do abjecto livro numa defesa da liberdade de expressão contra a censura e os censores, sendo que os comentadores profissionais daquelas caixas de comentários não moderadas, que fazem parte da mesma cultura do abjecto livro, quando souberam do patrocínio do ex-primeiro-ministro desataram a politizar a coisa dizendo que se tratava de “censura de esquerda”, porque o livro atacava “personalidades de esquerda”. Compreende-se, não tinham lido o livro, e depois do recuo do apresentador tiveram que engolir em seco. Aliás, um aspecto interessante das “revelações” do abjecto livro é que se centram nas conversas que teve sobre a vida privada e íntima e em insinuações de carácter, deixando de lado todo o manancial de conversas que certamente também teve sobre a vida económica, dinheiros, fraudes, esquemas. Se essas conversas são da mesma natureza das “revelações” dos “segredos” fez bem, mas a opção é, pelo menos, interessante.

E ainda mais uma prevenção: eu também faço parte da lista de nomes do índice, mais um dos golpes publicitários para incluir nas “revelações” o maior número de pessoas conhecidas. O autor, com quem nunca privei e que só encontrei uma ou duas vezes, conta que se maçou muito com uma conversa anticomunista com ele num comboio para o Porto e repete uma história de ganância, que já tinha publicado, em que troquei escrever para o Expressopelo Diário de Notícias porque este pagava mais. E depois elogia-me pela apresentação de um livro de seu pai. Não é pois certamente por retaliação com estas “revelações”, que eu digo que o livro é abjecto. Podia ficar caladinho e passar pelos pingos da chuva, alinhando com muitos que tem medo de se meter com esta gente, por óbvias razões – entre outras coisas vingam-se.

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