quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Artigo de Luís Valente Rosa, in "VISÃO"


OS TRABALHOS E OS





Abaixo as férias


Reflexões da silly season


Luís Valente Rosa (www.luisvalenterosa.pt)
12:02 Segunda feira, 25 de Agosto de 2014 |
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Na semana passada, foi notícia a iraniana que ganhou a Medalha Fields (todos lhe chamam o "Nobel" da Matemática). Do que li nos jornais, a atribuição do prémio foi triplamente inédita. Em primeiro lugar, foi a primeira vez que uma mulher acedeu a tão elevado privilégio (desde 1936, quando foi criado). Em segundo lugar, trata-se de uma mulher que estudou no Irão (duplo pasmo, por ser o país que é e pelo posicionamento que as mulheres nele têm). Finalmente, por ela ter tido uma filha recentemente (tem agora 3 anos, creio eu).

Foi esta última questão que ficou a remoer em mim. De facto, é normal associar o ter um filho a um certo prejuízo da carreira profissional. Sobretudo no caso das mulheres. Porquê? Porque as "férias" de parto são para dar atenção à criança e não ao trabalho. Ou seja, são mesmo férias.

Estando nós todos em pleno período de veraneio (mesmo os que não estão), vivendo a fundo a chamada silly season, deu-me para a inconsequência e comecei a imaginar uma sociedade sem férias. Processo alucinado que pretendo descrever.

Comecei por pensar que uma pessoa que ama o seu trabalho, como será certamente o caso da iraniana em causa, pode muito bem estudar ou pensar sobre os seus problemas profissionais enquanto dá de mamar, muda fraldas ou passeia o rebento. O que não é normal acontecer, eu sei. Mas precisamente porque as pessoas, de uma maneira geral, não amam o seu trabalho.

Conclusão que me empurrou para mais longe na reflexão, concluindo logo de forma instintiva que é impossível amarmos o nosso trabalho se, desde os 6 anos, o vemos (e o estudo, pois um mal nunca vem só) como um suplício que temos de suportar para merecermos as tão desejadas férias. São estas o paraíso que reforça a existência do inferno. A maior parte de nós reproduz em adulto essa dicotomia de infância, tanto em relação ao estudo como ao trabalho.

Logo a seguir, tornou-se claro no meu espírito que o problema não é só anual, mas semanal também. O que significa que o fim-de-semana é o prémio merecido para a escravatura dos outros 5 dias. Tão ansiado, que na sexta-feira já se faz pouco e a segunda-feira serve para discutir o futebol ou temáticas femininas de terapêutica similar. [Uma informação útil: existem especialistas que avisam que nunca se deve comprar um carro que tenha sido fabricado a uma segunda ou sexta-feira, pois a qualidade da construção é muito inferior. E não estou a brincar.]

Por todas estas razões, dei por mim a imaginar uma sociedade na qual os indivíduos, desde tenra idade, trabalhariam menos tempo por dia durante todos os dias da semana e do ano. Por exemplo, na idade adulta, trabalhariam 5 horas em 7 dias, em vez de 7 horas em 5 dias. Mais, como não haveria férias anuais, poderiam trabalhar 4 horas por dia. Dedicariam outras 4 horas a um lazer formativo (leituras, arte em geral) e cerca de 8 horas a um lazer não formativo (família, investimento em si próprio, descanso, o que se quisesse). E 8 horas ao sono. Quando fosse preciso, o trabalho poderia ocupar mais horas durante uns dias. Do mesmo modo, o lazer poderia ser mais intenso durante certos períodos, que poderiam coincidir com viagens, por exemplo. Num cenário deste tipo, o trabalho seria algo de natural e não um pesadelo. Faria parte indissociável da vida, como o descanso, o tempo para a família, o desenvolvimento como ser humano ou o divertimento.

Duas objecções logo formuladas por quem fica complexado ao ver ideias geniais nos outros: (1) nada disto se aplicaria a quem tem um trabalho manual e precisa de descansar o corpo; (2) também não se aplicaria a quem tem o azar de ter um trabalho de que não gosta.

No primeiro caso, anoto que a reacção é ainda prisioneira de um espírito próprio da revolução industrial - que deu, aliás, origem ao actual sistema -, hoje em vias de uma extinção que implica que o trabalho manual seja cada vez mais raro.

No segundo caso, reconheço que a questão é profunda e mereceria uma crónica só a si dedicada. Mas deixo uma interrogação perturbante a quem me estiver a ler: será que o nosso principal problema é o azar de termos um trabalho de que não gostamos, ou antes o luxo de não nos obrigarmos a gostar do trabalho que temos?





Ler mais: http://visao.sapo.pt/abaixo-as-ferias=f793730#ixzz3BcCCx6tK

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