sexta-feira, 28 de março de 2014

O Pensamento de Frei Bento Domingues,via www.publico.pt













OPINIÃO
O ser humano tem cura (2)


FREI BENTO DOMINGUES O.P.

09/03/2014 - 01:52


O tempo de Quaresma é dedicado a descobrir quem somos.




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TÓPICOS

Religião


1. Dizem-me que a verdadeira cura do ser humano seria a sua substituição pelo pós-humano, realidade sem memória nem futuro, sem infância nem velhice, liberto da doença e da morte, despido de qualquer interrogação metafísica ou preocupação ética. Ao que parece, existem ciências e técnicas disponíveis para uma “saída limpa” da nossa humanidade cansada e, mesmo assim, irritantemente belicosa.

Como já sou velho, tenho dificuldade em me adaptar à ideia e não alinho em soluções de desespero. Prefiro recorrer a um aforismo de Heráclito: sem esperança, não encontrarás o inesperado. S. Paulo também não prometeu muito mais. Na célebre Epístola aos Romanos (cap.8), depois de muita ginástica mística e antropológica, observa com modéstia: vivemos suspirando e gemendo pela redenção do nosso corpo, num mundo em dores de parto, pois só estamos “salvos em esperança e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? Se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos”.

Contamos com a aurora depois da noite, deixando aberto o mistério indizível da existência. Não é inevitável que só a criança viva de perguntas e o adulto se afogue em respostas apressadas. Renascemos numa atitude de permanente interrogação. A invocação convencional de Deus, como pronta e beata solução para todas as questões e enigmas, confunde a divindade em que vivemos, nos movemos e existimos - como diziam os pagãos (Act 17,27) - com um irrisório tapa buracos de nada. A verdade está na procura.

Humanizar-se é abrir-se às surpresas do céu e da terra, de dentro e de fora, do presente e do futuro. Mas sem romper com o reino das aparências, não é possível descobrir e curar a vontade de dominação que se esconde nos projetos mais grandiosos.

2. Ao glorificar a prodigiosa história do esforço humano que desde as cavernas criou e desenvolve uma civilização cada vez mais prodigiosa e sofisticada, procura-se ocultar a face escura desse percurso. Quem recorda vítimas esquecidas do progresso, as civilizações sepultadas, a memória eternamente apagada das pessoas que ninguém lembrará? Porque insistirmos na falta de respeito à natureza e aos seus precários equilíbrios, sabendo que comprometem o futuro das próximas gerações? Cada verão que passa, cada inverno que chega alarga-se mais o irreparável: a prevenção é demasiado económica.

Quando se celebra e interpreta a música, a literatura, a pintura, a arquitectura, esses frutos da espantosa criatividade de todos os povos e culturas, não se deve esconder tudo o que foi impedido e arrasado. Não nascendo de uma razão utilitária, esse tipo de cultura manifesta que o ser humano não tem preço, tem dignidade.

Diz-se que Platão agradecia a Deus ter nascido homem e não bruto, grego e não bárbaro e, acima de tudo, ter nascido no tempo de Sócrates. O desprezo pelos membros dos outros povos, não revelava apenas a sua ascendência aristocrática, ofendia também a memória do seu mestre. A Sócrates, o filósofo dos filósofos, mediante o método da pergunta irónica e da maiêutica, só lhe interessava revelar os seres humanos a si próprios e torná-los virtuosos, vencendo a ignorância, fonte de todos vícios. Injustamente condenado à morte, observou: “é muito mais triste merecer um castigo do que sofrê-lo”.

Na sua antropologia, a morte do corpo era uma cura. Libertava a alma dessa prisão. Ao ver os que choravam a sua condenação, terá reagido: “Porque chorais? Não sabeis que desde que nasci, estava condenado, pela natureza, a morrer?”

Não basta vencer a ignorância e os erros que ela provoca. Não se pode deixar o nosso corpo à porta e viver como um puro espírito. O eu de cada pessoa é sempre um corpo animado por uma mente incarnada, ligado pelo conhecimento e pelo afecto aos outros, ao cosmos e a Deus.

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