FOTO MINHA
REFLEXÃO: O BAÚ
O sótão da nossa casa é, para quem o tem, um lugar quase sagrado. Existe um sótão em todas as casas velhas dos familiares que temos nas aldeias mais recônditas do nosso país. Há um na casa da minha avó, onde eu ia, em pequenina, com o intuito de ver as maravilhas, dignas da “Feira da Ladra”: era um local quase proibido, quase sagrado, quase misterioso, onde, ao longo de anos se iam acumulando velharias, mesmo que cheias da vida que lhes transmitimos, ao longo da vida, manuseando-as.
Um dia destes, sem que o tivesse premeditado, decidi subir a escada, deixando para trás aquele sentimento de medo que me invadia, em pequena: medo da avó que não era para brincadeiras, medo dos “fantasmas” que por lá dormiam, medo de me confrontar com forças misteriosas, abafadas pelo ar dos tempos…
Tanto pó à minha volta! Tantas teias de aranha! Encontrei um sítio em cacos e uma névoa que parecia querer cobrir espaços da minha infância, bocados esquecidos de mim, num tempo em que não fui feliz. Desse tempo, de que não quero falar, não tenho boas recordações e este “nevoeiro” denso, que apercebo pela luz das duas telhas de vidro, adverte-me, instintivamente, para o aparecimento de um qualquer SER, reflexo da minha idade primeira, eu própria…quem sabe? transformada na mulher que sou e que quero continuar a ser, com os ajustamentos que os tempos e a idade permitiram que me fosse fazendo…
Olhem aqui os tapetes velhos da avó! Comidos pelo tempo, antiquíssimos e sujos…eis que me deixam perceber a forma de um baú! Estranho…não é de metal nem de madeira…não recorda os dos filmes de piratas…é etéreo, fantástico, existe sem existir…mas convida-me a mergulhar as mãos num fundo que não existe, à procura de qualquer coisa de que, possivelmente nem lembro”. Já conheço esta sensação do “tem que ser”…E do fundo do “baú”, começo a retirar bocados de velhos papéis desfeitos enterrados em pó, bocados de pensamentos onde guardei memórias de mim, do bom e do mau que em mim houve, até à “minha tomada da Bastilha”, que se deu quando entrei na Escola Superior De Educação, enquanto meus pais lá continuavam, juntinhos, em São Tomé e Príncipe, donde eu vim para a”metrópole”, aos sete anos da minha inocência.
Não deixo de pensar que este “baú” cheira a musgo dos anos molhados de lágrimas minhas, ao vencer etapas de merecidas fugidas da mediocridade. Nele está grande parte do meu rolar da pedra, montanha acima, qual rei “SISIFO”! Folhas amarelecidas de cartas de meus pais para a minha avó… velhas fotos a preto e branco da minha comunhão… o meu primeiro “Livro de Curso, com uma caricatura dos meus traços físicos…Sim, porque os morais, espirituais, guardei-os e fui-os aperfeiçoando até hoje!
Ao longo dessa vida que deixou resquícios gravados pela força das lágrimas, ganhei outro Curso, a Licenciatura em Estudos DE Português e Inglês, tive dois filhos, perdi um casamento sufocante, viajei por países de outros continentes, ao longo de uma etapa que acreditei ser de salvação…
Que foi feito de mim, “baú”, que me encontro, aos pedaços, dentro de ti? És, apesar de tudo, o meu momento especial dos últimos tempos…E não termino sem citar duas frases de Fernando Pessoa, do “Livro do desassossego”, que penso irem de encontro a todo este viver:”
O valor das coisas não está no tempo que elas duram mas na intensidade com que acontecem. Por esse motivo, existem coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.
Tu, “baú”, és o meu momento inexplicável…As folhas amarelecidas são factos inesquecíveis…
Eu só sou comparável a mim própria!
Maria Elisa Rodrigues Ribeiro
Maria.elisa.ribeiro@iol.pt
http://lusibero.blogspot.com
Sem comentários:
Enviar um comentário