quinta-feira, 18 de novembro de 2021

De Luís Osório...

 POSTAL DO DIA

Carta à única filha de José Saramago
1.
José Saramago fez ontem 99 anos.
Felizmente muitos e muitas se lembraram que ontem era o primeiro dia das comemorações do seu centenário.
Falou-se e escreveu-se muito.
Dos livros, da obra, de polémicas, de Pilar.
Mas não li nenhum texto ou ouvi qualquer referência à sua única filha.
2.
Chama-se Violante e é uma mulher extraordinária.
Conhecia-a no Funchal onde vive há muitos anos.
Nunca com ela estivera, mas quando a ouvi, quando me falou num tom de voz próximo ao pai, foi como se de alguma maneira já a conhecesse.
3.
Devia-lhe este postal.
Quando lhe falam de José, seu pai, ela baixa a cabeça e responde ainda mais baixo. Fala do orgulho de ser filha do Prémio Nobel, do amor que sente por tudo o que ele lhe deixou, a ternura das memórias, o sofrimento pelos silêncios inevitáveis.
Violante Saramago é uma pessoa rara.
Escreve livros infantis e juvenis, inventou o Quinas e deu-lhe vida em vários livros. Escreve para crianças e adolescentes sem os infantilizar, escreve como se tivessem a mesma idade, ela e eles.
Pergunto-lhe: porque não escrever um romance?
Violante diz-me que não, como poderia ousá-lo? Afinal, é filha de José. Não se brinca com coisas sérias porque não está ao nível sequer de uma perna do pai.
4.
Filha de José Saramago e da pintora Ilda Reis. Bisneta do célebre avô Jerónimo e de Josefa. Sangue do mesmo sangue, mas sempre discreta no seu canto, na sua ilha, sem se fazer notar, metida nas suas coisas como se não fosse quem é.
Muitos são os que falam em nome do pai. Descrevem-no, aplaudem-no, definem-no, contam histórias, fazem questão de mostrar proximidade, mas ela não.
É mesmo uma mulher extraordinária.
Mas bolas…
(é demasiado)
Ontem era um dia especial e esperei ler sobre ela.
(a única filha)
(a única descendência)
Mas não.
5.
Escreve livros para pequeninos e poemas para si própria. Pinta como a mãe e guarda os quadros. Não se põe em bicos de pés nem exige atenções ou salamaleques. Num tempo como este, de tantas sombras, egoísmos e vaidades, foi um privilégio tê-la conhecido e ouvido, no seu tom de voz baixo, quase envergonhado, mas paradoxalmente afirmativo, firme, cortante.
6.
Por isso, lhe escrevo esta carta.
A ela e a si.
A ela para lhe agradecer a grandeza do silêncio.
A si para lhe dizer que Violante Saramago, filha do Prémio Nobel da Literatura, tem sempre um livro do pai na cabeceira e não precisa que ninguém saiba quem é pois, aconteça o que acontecer, seja feito o que vier a ser feito, sabe bem de onde veio, o que foi dito e o que lhe interessa guardar todas as noites antes de adormecer.
No primeiro dia da celebração do centenário não lhe quero (por uma vez9 falar do José saramago, mas apenas da única coisa que deixou do seu sangue para lá dos livros.
Da Violante Saramago.
Muitos parabéns
(eu não me esqueci)
LO
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