quinta-feira, 25 de julho de 2019

Os medicamentos mais importantes contra o cancro são antigos, não custam nada, e começam a desaparecer. Se isso acontecer, deixamos de poder tratar cancros. Os medicamentos inovadores e caros são para um grupo limitado. E só funcionam associados aos medicamentos antigos, de que ninguém fala.
A indústria não produz por serem demasiado baratos?
A indústria até os produz. O problema são os distribuidores. Estivemos mais de um ano sem um corticoide indispensável no tratamento de metástases cerebrais. O pouco que se produzia era desviado para a Alemanha, que paga cinco vezes mais. Produz-se menos e são desviados.
Como se explica uma coisa destas?
Tenho muita dificuldade em entender. Mas a distribuição resguarda-se na ideia de mercado livre. Não podem obrigar ninguém a vender cá porque estamos num mercado livre. E vão vender onde lhes pagam mais. Mas não sei porque a vontade política e económica há de ser mais forte do que vidas. E não entendo porque não pode haver uma lei a obrigar que uma parte tenha de ser vendida cá. Fomos nós que criámos o mercado livre. Também o podemos mudar.
Há portugueses que não têm acesso à medicação de que precisam?
Começa a haver. Mas não é um problema só nosso. Os EUA fizeram acordos com a Índia para produzir medicamentos. Estamos a tentar chamar a atenção dos políticos europeus. Mas não é tão sexy como os medicamentos caros, e a comunicação social não fala disto. A Sociedade Europeia de Oncologia Médica já criou um grupo de trabalho para o acesso a medicamentos – caros e não caros. Queremos soluções. Farmacêuticas e distribuidores têm um negócio a gerir, mas nós temos vidas à nossa frente.
O que se diz ao doente: ‘um medicamento podia salvá-lo, mas o mercado livre está primeiro’?
Não vale a pena colocar esse peso no doente. Tentamos alternativas. A geração antes da minha dizia que não queria saber de preços. A minha já não pode ter essa atitude. E a que vier a seguir ainda menos. Temos de saber o preço de tudo e até adaptar o tratamento ao que o doente pode suportar.
Como é exercer Medicina assim?
Estamos a caminhar para uma Medicina a duas velocidades: a dos ricos e a dos pobres. Para um médico que tenha consciência, é muito doloroso.

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