quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Sobre a Honra...



Crónica de Baptista Bastos de 2009, encontrada numa pesquisa na Net.

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Crónica das palavras


Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem-se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos fatos e as evidências da realidade. Mas também escritores e jornalistas as debilitam e as entregam às suas pessoais negligências. Não é, somente, uma questão de gramática e de estilo; mas é, também, uma questão de gramática e de estilo. Há escritores e jornalistas que o" não são à força de o querer ser. A confusão instalou-se, com a cumplicidade leviana de uma crítica pedânea1 e de um noticiário predisposto a perdoar a mediocridade e a fraude.
As palavras possuem cores secretas, odores subtis, densidades ignoradas. O discurso político conduz-nos ao nojo da frase. Pessoalmente, tento limpar o reiterado registo da aldrabice e da ignorância com a releitura dos nossos clássicos. Recomendo o paliativo2. Eis-me às voltas com as Viagens na Minha Terra. Garrett3 não era, propriamente, uma flor imaculada. Mas foi um mestre inigualável na arte da escrita. Lembro-o porque, a seguir, revisitei o terceiro volume de As Farpas, onde Ramalho3 reproduz uma conversa com Herculano3. O historiador retratou assim o seu companheiro das lutas liberais: "Por cem ou duzentas moedas, num dia de apuro, o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quiserem, menos de pôr num papel, a troco de todo o ouro do mundo, uma linha mal escrita."
Desaprendeu-se (se é que, vez alguma, foi seriamente aprendido) o vocabulário da língua. Lê-se-o por aí publicado e a pobreza lexical chega a ser confrangedora. Não se trata de simplicidade; antes, desconhecimento, incultura, ausência de estudo. "Foge de palavras velhas; mas não receies o uso de palavras antigas." Recomendava Garrett. Palavras velhas, travestidas de 'modernidade', são, por exemplo: expetável, incontornável, enfatizar, implementar, recorrente, elencar, fatível, plafonamento, exequível, checar, fraturante, imperdível, abrangente, atempadamente, alavancar, empolamento - e há mais.
Reconheço o meu verdete por certas palavras e expressões. Não é embirração de caturra, nem rabugice de um reta-pronúncia. Será o gosto da palavra, a alegria de com elas trabalhar há longuíssimos anos, a circunstância de ser um leitor com fôlego, o fato de ter tido professores como o gramático e linguista Emílio Menezes, goês paciente, sábio e afável; e de haver frequentado alguns dos maiores escritores do século passado, para os quais o ato de escrever representava moral em ação. Lembro, com emoção e orgulho, Aquilino, José Gomes Ferreira, Migueis, Sena, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Abelaira. Esta crónica foi, também, um pretexto para os lembrar."

Baptista Bastos, Diário de Notícias, 4 de Fevereiro de 2009








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