quarta-feira, 30 de março de 2022

Texto de Luís Osório

 


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13 h 
POSTAL DO DIA
O último cigarro de Simone de Oliveira
1.
Simone de Oliveira está hoje, neste preciso momento, no palco de um Coliseu dos Recreios absolutamente esgotado.
Um espetáculo que foi anunciado como o seu último.
A derradeira presença num concerto de uma mulher que soube estar à frente do seu tempo – no modo como olhava, na forma como estava, no que dizia e sobretudo no que teve a coragem de assumir.
2.
Com pouco mais de vinte anos abandonou o marido por não querer ser maltratada. Para Simone de Oliveira era insuportável ter um homem a definir o que era melhor para si. E ainda mais insuportável ter um homem a bater-lhe ou a humilhá-la.
Saiu de casa e não teve logo o apoio da família.
Saiu de casa e o país não compreendeu que tal fosse possível.
As mulheres tinham de se subordinar aos maridos, não existia outra opção.
Antes da maioria gritar contra a violência doméstica ou pela igualdade, Simone não se importou de pagar o preço que fosse necessário para gritar ao mundo que as mulheres tinham direito a ser livres.
3.
Quando ninguém quis cantar a “Desfolhada” porque uma mulher não podia dizer que um filho se faz por gosto, ela disse presente.
Cantou a Desfolhada, ganhou o Festival da Canção e o poema de Ary dos Santos foi cantado por um país que aí começou a despertar.
4.
Quando perdeu a voz fez o que era preciso para sobreviver.
Sem peneiras, sem vedetismos, sem tristezas ou depressões.
E recuperou.
Quando lhe diziam que não ia voltar a cantar, ela cantou.
E ainda melhor do que antes.
Com uma voz mais rouca, mais funda, mais intensa.
5.
Quando teve um cancro os médicos temeram que pudesse ser-lhe fatal. Não foi. Tinha 50 anos e resistiu. E voltou a ter um cancro na mama vinte anos depois, voltou a resistir.
Simone de Oliveira é uma mulher livre.
Cantou.
Viveu grandes amores.
Representou.
Fez programas de televisão.
Ajudou jovens artistas.
Viveu grandes polémicas e dividiu as águas entre quem a venerou sem condições e quem, sem sucesso, a tentou derrubar.
6.
Nenhuma artista portuguesa viveu tantas vidas como Simone de Oliveira.
E é isso que hoje se celebra num Coliseu dos Recreios esgotado desde o dia em que os bilhetes foram postos à venda.
Celebra-se a vida de uma mulher maior.
Celebra-se a última diva portuguesa, a mulher que nunca se contentou em viver pela metade.
Uma mulher inteira.
Radicalmente livre.
A quem agradeço por tudo o que é.
Por tudo o que nos mostrou ser possível.
Agradeço por este país que é sempre maior na sua voz.
LO

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