terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Poesia do nosso Sebastião da Gama



Hora Vermelha

Por que vieste, pensamento? 
Já me bastava o Mar violento, 
Já me bastava o Sol que ardia… 
P’los meus sentidos escorria 
não sei lá bem que seiva forte 
que a carne toda me deixava 
qual uma flor ou uma lava 
num riso aberto contra a Morte. 

Já me bastava tudo isto. 
Mas tu vieste, pensamento, 
e vieste duro, turbulento. 
Vieste com formas e com sangue: 
erectos seios de mulher, 
as carnes róseas como frutos. 

Boca rasgada num pedido 
a que se quer e se não quer 
dizer que não. 
Os braços longos estendidos. 
A mão em concha sobre o sexo 
que nem a Vénus de Camões. 

Aí!, pensamento, 
deixa-me a calma da Poesia! 
Aqui na praia só com ela, 
virgem castíssima, sincera!… 
Sua mão branca saberia 
chamar cordeiro ao Mar violento, 
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia. 
Mas tu vieste, pensamento. 
Tua nudez, que me obsidia, 
logo, subtil, encheu de alento 
velhos desejos recalcados, 
beijos mordidos 
antes de os ver a luz do Dia. 

Vai-te depressa, pensamento! 
Deixa-me a calma da Poesia. 
Fique em minh’alma o só perfume 
da cerca alegre de um convento. 

Os meus sentidos embalados 
numa suave melodia. 
(Ah!, não nos quero desgrenhados 
como quem volta de uma orgia). 

E então meus lábios mais serenos 
do que se orassem sobre um berço, 
sorrindo à Vida, 
sorrindo à Morte. 
Ah!, não nos quero assim grosseiros, 
ébrios, torcidos, 
como depois de um vinho forte. 

Sebastião da Gama, in 'Cabo da Boa Esperança' 

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