domingo, 1 de outubro de 2017



A ausência de África na literatura portuguesa e a descolonização como absurdo
em 29/09/2017 com 2 COMENTÁRIOS


Crónicas > Carlos Vale Ferraz

«Apenas após o 25 de abril a África se foi inscrevendo na literatura portuguesa, principalmente, através da guerra colonial, mais do que do colonialismo, a sua causa. E presentemente? Para a professora Margarida Calafate Ribeiro, África originou uma literatura da nostalgia, dos que tiveram o azar histórico de fechar o ciclo imperial com uma longa guerra e dela regressar com o terrível sentimento de se terem tramado em vão. A geração do logro político.»Por: Carlos Vale Ferraz


Faço parte da geração que João de Melo classificou como a dos escritores da guerra colonial, que o inclui, à Lídia Jorge, ao António Lobo Antunes, entre outros que, sendo escritores, tivessem ou não passado pela experiência de África, começaram a sê-lo através de obras relacionadas com esse facto marcante. Acabei de publicar um romance em que não falo da guerra, mas da sua origem, dei-lhe o título de “A Última Viúva de África” porque, mais uma vez, decidi que seria o último sobre África. Oiço que se fala demasiado de África na literatura portuguesa. Não. Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, mesmo as letradas, há apenas dois pequenos grupos que falam dela, a dos que por lá passaram nos anos da guerra e dos que de lá regressaram. Estão em vias de extinção.

O vazio é antigo. A literatura portuguesa desconhece África desde o século XIX. O continente negro surge de forma marginal na ficção portuguesa n’ «As Farpas» e em «Uma Campanha Alegre», de Eça de Queiroz. A ironia de Eça funciona pela redução ao absurdo. Neste caso, até à tese final de que a única solução para as colónias era vendê-las, ou dá-las. Já então África e as colónias surgiam como terras de miséria e abandono, povoadas maioritariamente por condenados. É a mesma África que redescubro neste meu último romance.

A República não aumentou a presença de África na literatura e o Estado Novo tentou forçar o interesse com a atribuição de prémios literários a temas coloniais, de que os escritores “metropolitanos” se alhearam. Os neo-realistas passaram ao largo de África, assim como os existencialistas, os surrealistas e até os situacionistas.

Nos anos 60 continuam a ser raras as referências a África, os poucos exemplos, vindos das fileiras do regime, realçam o discurso oficial de defesa do “ultramar”, os romances fora da norma do “império” apresentam a questão colonial através de uma linguagem criptada.

Apenas após o 25 de abril a África se foi inscrevendo na literatura portuguesa, principalmente, através da guerra colonial, mais do que do colonialismo, a sua causa. E presentemente? Para a professora Margarida Calafate Ribeiro, África originou uma literatura da nostalgia, dos que tiveram o azar histórico de fechar o ciclo imperial com uma longa guerra e dela regressar com o terrível sentimento de se terem tramado em vão. A geração do logro político.

Foi a este logro político que cheguei ao confrontar as personagens de “A Última Viúva de África” com o início do que a historiografia oficial designa como “movimento descolonizador”. O romance desenvolve a reflexão do absurdo como atributo inerente ao conceito de descolonização. O narrador, confrontado com as notícias e as reportagens dos tumultos que se seguiram à independência do Congo Belga, em 1960, considera que os europeus andavam por África a extrair o que necessitavam para viverem melhor nas suas terras de origem, aonde regressariam após a campanha. Para ele, descolonizar constituía uma prova de inteligência.

A tese do romance é a de que a descolonização foi apenas o reconhecimento pragmático das vantagens da exploração indirecta das riquezas de África, agora dirigida por elites locais, aculturadas pelos europeus. Na realidade, o Congo Belga nunca foi colonizado, foi sim sujeito ao fenómeno histórico do colonialismo, à exploração violenta de povos e matérias-primas instituída e acordada na Conferência de Berlim, para satisfazer as necessidades dos complexos industriais desenvolvidos com a energia da máquina a vapor. A ficção de “A Última Viúva de África” é construída com algumas personagens de europeus que, por razões diversas, assumiram África como o seu destino final, como a sua pátria!

O comandante de mercenários, o inspector da PIDE e a colona portuguesa Alice Vieira, a última viúva de África, pertencem ao grupo dos que acreditaram ser impossível reverter a colonização, retirar dos povos colonizados o essencial do que os colonizadores levaram e lhes inculcaram e a estes extrair-lhes o que receberam dos colonizados.

A África não se libertou do colonizador, em parte porque não podia lavar-se do seu contacto, em parte porque não quis, ou não pode, reiniciar a sua nova etapa tendo como principal fonte a sua história antes da colonização, as suas tradições, as suas instituições, os seus deuses, os seus chefes e governos tradicionais.

O romance ensaia respostas para a pergunta sobre o que resta dos sonhos dos brancos em Árica, porque a ficção é mais adequada a abordar questões difíceis do que a análise política e histórica…

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©Carlos Vale Ferraz

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