"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
ARTIGO de Rui Tavares, in "Público"
OPINIÃO
O processo do Marquês
RUI TAVARES
01/12/2014 - 00:45
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Foi por estes dias do início de dezembro, mas no ano de 1776, que apareceu um cartaz na esquina da casa lisboeta do cardeal da Cunha, arcebispo de Évora, ex-inquisidor-mor, ex-presidente da Real Mesa Censória, e um dos homens que mais cargos e benefícios receberam do governo do Marquês de Pombal. Como descrito numa carta da época que se encontra na Biblioteca Pública de Évora, era isto que se via no cartaz:
«Dois ou trez homens, com tal ou insignia, ou Letra que indicavam serem Alfayates; e perguntava hum delles ao outro, ou aos outros: Que fazem aqui? Respondiam: Estamos para virar huma casaca.»
Era o fim do poder pombalino. Nas ruas sussurrava-se “isto está para acabar”; dentro das casas apostava-se sobre quem seriam os primeiros a abandonar o barco. Neste caso, acertaram. Quando o rei Dom José I morreu, a 24 de fevereiro do ano seguinte, o cardeal da Cunha foi mesmo o primeiro a receber o Marquês de Pombal no Palácio Real e a anunciar-lhe de maneira seca: “Vossa Senhoria não tem mais nada a fazer neste lugar.”
Pois é, tudo nos parece muito moderno nesta história de cunhas e de virar casacas num cartaz de 1776. Ficou mais moderno ainda quando alguém decidiu chamar à investigação sobre José Sócrates, presumivelmente por causa da proximidade do seu apartamento à rotunda lisboeta, Operação Marquês. É um nome muito mal escolhido — e só não é pior porque talvez só os historiadores dêem por isso.
***
Houve de facto, há 230 anos, um célebre “processo do Marquês”. Aconteceu dois anos depois de Pombal ter perdido o poder na corte e de os seus fiéis inimigos e alguns desleais amigos terem ocupado os cargos correspondentes no Governo da “Viradeira” de Dona Maria I. O ex-ministro do Reino foi acusado de corrupção e enriquecimento às custas do tesouro público, sem esquecer todos os seus abusos de poder e repressões ferozes. Entre 1779 e 1781, o velho Marquês (tinha a idade do século, tendo nascido em 1699) veio defender-se vigorosamente numa série de textos que de pouco lhe valeram. Não só as suas antigas vítimas estavam pouco dispostas a ouvi-lo, como a verdade é que ele havia enriquecido no exercício do poder. Os amigos que lhe restavam de pouco lhe podiam valer: estavam dispersos pelo país, num discreto exílio, trocando entre si cartas como a que citei no início deste texto. As acusações foram dadas por provadas e o Marquês de Pombal foi condenado. Mais humilhante ainda, foi depois perdoado pela rainha, em razão da sua velhice e enfermidades. Em 1782, Pombal morreu com o nome manchado e o orgulho ferido.
Quem for que tenha dado o nome de "Marquês" ao caso de José Sócrates prestou assim um mau serviço ao processo e ao país. Desde logo porque, para o bem e para o mal, Sócrates não é Pombal. E sobretudo porque o processo do Marquês, há 230 anos, foi o epítome do que este não deveria ser: uma amálgama de sentimentos, arrogância de um lado e desejo de vingança do outro, divisão do país em duas metades incomunicáveis que se foram guerreando, sob diversos disfarces, nas gerações seguintes. O país não saiu regenerado, nem melhor. Pombal, nem bem condenado, nem inocentado. Depois dele veio Pina Manique, e depois Napoleão, e a rainha, agora já louca, embarcou para o Brasil dizendo: “Não corram! Vão pensar que estamos a fugir.”
E estávamos. Espero que já não seja o caso.
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