quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Martin Amis, escritor britânico, fala do Holocausto...

Martin Amis: “O homem não pode entender o holocausto, porque o holocausto não é humano”

O escritor Martin Amis volta a Auschwitz num romance que é uma espécie de comédia/sátira do Holocausto. The Zone of Interest é sobre o quotidiano de uma vila habitada pelos familiares dos SS onde se exterminam judeus. Que linguagem para falar do absurdo? Ele explica numa conversa intimista com leitores sobre o romance que chega a Portugal na Primavera.
Martin Amis fotografado este ano CORBIS


“Sabemos muito sobre como tudo foi feito, sobre como Hitler fez o que fez; mas parece que continuamos sem saber quase nada acerca do porquê. Porque é que ele fez aquilo?” A interrogação acerca das verdadeiras intenções que estiveram na origem do Holocausto, do que motiva alguém a empreender uma tarefa com aquela “dimensão de horror”, surge como uma das razões apontadas pelo escritor Martin Amis para, quase meio século depois, revisitar um território que já tinha explorado em Time’s Arrow, or the Nature of Offense (1991).


É o princípio de uma conversa sobre o seu mais recente romance, The Zone of Interest (Knopf), o seu 14º romance, uma espécie de comédia sobre o Holocausto que divide opiniões especializadas. Há quem o considere uma obra-prima, como o norte-americano Richard Ford, ou a crítica inglesa que o considerou o melhor livro de Amis em 25 anos, desde London Fields (1989); e também há quem, como Joyce Carol Oates nas páginas da New Yorker, o tenha achado superficial no modo como trata questões tão profundas como a desse “porquê”. A discussão sobre The Zone of Interest mantém-se viva meses antes do romance ser editado em Portugal, na próxima primavera, pela Quetzal.



É um Martin Amis calmo, menos sarcástico do que muitas vezes o vemos, o que está a falar na McNally Jackson, a livraria no Soho que quer ser referência entre as livrarias de Nova Iorque. Passaram mais de três meses sobre a publicação do romance que foi rejeitado pelas editoras tradicionais de Martin Amis na Alemanha e França, a Carl Hansen e a Gallimard. O público que ali está sabe da polémica, muitos já leram o livro e têm questões a pôr ao escritor. “A decisão de escrever ficção, seja sobre que tema for, é sempre complicada. Norman Mailer disse que quanto mais se escrevia mais se ia sentindo estranho. Acho que é isso, essa estranheza crescente a partir de algo”, afirma Martin Amis quando o anfitrião da conversa, o também escritor e músico Glenn Kurtz, lhe pergunta sobre o que o levou a voltar àquela zona de desconforto, ou como Amis prefere chamar-lhe, a uma zona de “incredulidade” que confere um carácter de excepção ao que foi o III Reich.

Mas é um argumento já demasiado racional para explicar o impulso que leva a que um escritor se lance à escrita. “Há quem diga que é um frisson, mas talvez seja mais acertado dizer que é uma dádiva, no sentido de dom. Algo que nos é dado e que conseguimos agarrar no meio de tantas distracções. Neste caso, ‘deram-me’ uma imagem e foi daí que me veio o assunto”, conta num tom pausado, sotaque britânico inalterado pelos quatro anos a viver em Brooklyn, Nova Iorque, depois de ter estado quase dois no Uruguai, país da segunda mulher, Isabel Fonseca, e sem perder contacto com Londres, onde nasceu em Agosto de 1949. E essa imagem original era: “Um homem apaixonava-se por uma mulher na primeira vez que a viu”, revela. “E era muito clara para mim. É com ela que começo o romance”, continua sobre um livro onde Hitler nunca é citado, o seu nome nunca parece, mas o fantasma comanda a cena, logo a partir dessa primeira imagem.

O homem que se apaixona é um oficial nazi de segunda linha, Angelus (Golo) Thomsen, alguém que quer estar pouco comprometido com o regime, um não apoiante “como acontecia com cerca de 40 por cento da população alemã da época”, sublinha Amis, mas demasiado oportunista para revelar as suas dúvidas e deixar de cumprir ordens. Quanto à mulher, é casada com o comandante da chamada zone of interest, a área composta por um campo de trabalhos forçados e extermínio na vila de Auschwitz, com o bairro onde vivem os oficiais nazis e as suas famílias.

Não sabia se ia ser apenas um conto ou um romance longo. Diz que é quase sempre assim. Há uma ideia mas pouco mais acerca da sua concretização. No tal princípio, é só uma força que nos puxa para a frente”, continua, e cita Vladimir Nabokov, uma das suas grandes referências literárias, a par com Saul Bellow. “Ele costumava dizer sobre Lolita que a ideia para o romance lhe surgiu ao ler numa revista francesa um artigo sobre um chimpanzé que aprendeu a desenhar, mas que a única coisa que desenhava eram as barras da sua jaula. Alguém preso à sua jaula. E Lolita seria afinal isso”, refere-se numa associação ao relacionamento entre o professor Humbert Humbert e Dolores Haze, a rapariga de 12 anos por quem ele está sexualmente obcecado. “Ele molda-a como o carcereiro faz com o seu animal.”

Faz uma pausa. “Talvez isto dê para perceber que não há qualquer ligação entre The Times Arrow e este livro. Não sei explicar melhor. Talvez se tenha mantido a tal procura da razão, do tal porquê. Voltei a ler centenas de livros. Reli muitos. Voltei a ler The Holocaust (1986), de Martin Gilbert, numa edição diferente e quando comparei com a que edição que tinha lido vinte e tal anos antes, os meus sublinhados e anotações estavam nos mesmos sítios. A minha incredulidade estava intacta. O que me fez avançar foi uma entrevista que li de Primo Levi. Ele dizia que não era possível entender o Holocausto da perspectiva humana porque o Holocausto não era um projecto humano. Era algo que estava fora do homem. Simples, não é?: o homem não pode entender o Holocausto porque o Holocausto não é humano. Essa era a verdadeira questão”, conclui, “se ninguém sabia porque queria eu tentar saber?”

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