quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Poema de António Botto



Poema de António Botto (1897-1959), in O Citador -em Português dos princípios do século XX




A Noite Suavemente Descia




A noite
Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitádo
Até sonhei que morria.


E via
Goivos e cravos aos mólhos;
Um Christo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco rôxo, cinzento,
Rendas, velludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumôr de vento em surdina,
Insenso, rézas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;
Vellas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu... devagar morrendo.

O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem lagrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,
Estava todo coberto de lucto.

Depois, anciosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadía;
Beijámo-nos doidamente...
- Era dia!

E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram... e assim ficaram!...







António Botto, in 'Canções'

Sem comentários:

Enviar um comentário