sexta-feira, 31 de outubro de 2014

ARTIGO EM "PÚBLICO"





OPINIÃO
O tiro de largada


REMO MANNARINO FILHO

29/10/2014 - 00:46


No Brasil, há uma tradição universitária que talvez ainda não esteja inteiramente sedimentada, cheia de distorções, práticas curiosas e lacunas notáveis.




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Universidades
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Ensino Superior
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Ano grande do Brasil


A cultura brasileira acumula cinco séculos de uma relação extremamente conflitada com a ideia de educação e do ensino acadêmico. O problema é histórico e secular: é amplamente conhecida a total negligência da Coroa portuguesa em relação às instituições de ensino superior no Brasil nos tempos de colonização. Enquanto a Espanha começou a empreender universidades na América do Sul já no século XVI (eram 27 na época da independência), Portugal tomou a ativa decisão de não fazê-lo.

Se excetuarmos as escolas teológicas da ordem jesuítica, voltadas para a formação de sacerdotes, as primeiras instituições de ensino superior surgem no Brasil só em 1808, a reboque da chegada da família real. As academias pioneiras, aliás, tinham todas caráter técnico, voltadas que eram para o atendimento de certas necessidades práticas imediatas: a Academia Real da Marinha e a Academia Real Militar são os primeiros exemplos. Ao longo do século XIX, difundiu-se, em Portugal e no Brasil, o ideário segundo o qual o desenvolvimento dos países dependeria da formação de quadros técnicos especializados, capazes de empreender as obras de infra-estrutura necessárias para a construção do país. Nosso sistema de ensino superior já nasceu comprometido com essa resoluta matriz politécnica.

O resultado é, ainda hoje, uma tradição universitária que talvez ainda não esteja inteiramente sedimentada, cheia de distorções, práticas curiosas e lacunas notáveis. Apenas para apresentar um exemplo particularmente eloquente, mencione-se a inexistência, no Brasil, de um único Departamento de Estudos Clássicos – que, nas universidades mundo afora, são centros de ensino e pesquisa que dão testemunho de consciência civilizacional e de interesse pelas raízes culturais de uma nação. O fenômeno não chega a espantar, se levarmos em conta a matriz politécnica aludida mais acima. E tampouco admira que a nossa presidente reeleita, então candidata, tenha dito há coisa de um mês, numa entrevista em que analisava o fenômeno da evasão do ensino médio, que não seria mesmo possível estimular os jovens com o currículo atual, com disciplinas tão desinteressantes quanto a filosofia e a sociologia.

Quanto à distribuição do ensino, também uma dinâmica muito própria se formou – e, como professor universitário, eu tenho contato com isso diariamente. Em sala de aula, é bastante fácil perceber que uma parte substantiva dos alunos não deveria estar ali – às vezes por falta de nível intelectual, e mais frequentemente pelo mais absoluto e genuíno desinteresse pelos assuntos estudados. Ao mesmo tempo, há um sem-número de jovens talentosos, capazes e interessados que acabam sem acesso à universidade, seja por falta de uma educação fundamental de qualidade, seja por falta de condições financeiras.

Essa distorção tem certamente mais de uma causa. Uma delas, espécie filho bastardo do nosso bacharelismo, é a seguinte: nas metrópoles brasileiras, ser de classe média é sinônimo de ter algum curso superior, e o curso superior parece fornecer um diploma de pertença à classe média. Se o jovem é oriundo desse estrato social, então, ao fim do ensino médio, ele ingressa na faculdade – apenas porque é o que fazem as pessoas do mundo a que ele pertence. Não parece haver maior relação com o desejo de adquirir conhecimento, com o real interesse por certas questões, ou com a paixão ou o talento para os estudos. (Essa dinâmica já havia sido parcialmente diagnosticada na década de 40 por Otto Maria Carpeaux, no excelente ensaio A ideia da universidade e as ideias das classes médias – o mesmo que afirma que “das universidades depende a vida espiritual das nações.”)

***

Digo tudo isso porque acredito que uma análise da situação da educação superior brasileira deve ir além da mera menção aos números, citados por todos os lados tanto como prova do nosso atraso educacional quanto dos avanços conquistados nas últimas décadas.

Ir além dos números, no entanto, não significa ignorá-los. Para que os tenhamos em mente: se é verdade que nos últimos anos foram registrados recordes de alunos matriculados nas universidades (muito embora 2013 tenha apresentado uma queda no número total de diplomados), o avanço nesse campo ainda é muito modesto. Entre os brasileiros mais velhos (55 a 64 anos) temos um contingente de 10% de formados; entre os jovens adultos (25 a 34), o percentual é só um pouco maior: 14%. Nas mesmas faixas etárias, a Coréia do Sul deu um salto de 14% para 66%, e o México de 13% para 24%.

Se essas estatísticas já dão a impressão de que “estamos ficando para trás”, é preciso ainda levar em conta o fato de que elas não terminam de revelar a gravidade do nosso problema. O Brasil enfrenta também um sério desafio quanto à qualidade do seu ensino, e isso em todos os níveis, do fundamental à pós-graduação. O empenho dos governos em melhorar a quantidade total de diplomas emitidos termina por mascarar esse problema, certamente maior: o que é que esses diplomas efetivamente significam. Claro que não é simples conciliar a expansão do ensino superior com o apuro da qualidade – os dois propósitos parecem antagônicos, e talvez de fato o sejam. Seja como for, pesquisas qualitativas recentes trouxeram resultados desconcertantes: um levantamento do Instituto Montenegro, feito em 2013, concluiu que 38% dos universitários brasileiros são analfabetos funcionais (“podem até compreender textos simples, mas são incapazes de interpretar e associar informações”). Pesquisa semelhante feita pela Universidade Católica de Brasília em 2012 chegou a um número ainda mais preocupante: 50% de analfabetismo funcional.

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