domingo, 5 de outubro de 2014

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Carta de Carlos Fradique Mendes


À Senhora Diretora do jornal “Público”

Lisboa, alvores do Outono

Minha boa Amiga:


Fradique Mendes por António

De passagem por Lisboa e mesmo retirado, como estou, da vida pública, dos seus ardores e dos rumores a que ela dá lugar, tenho acompanhado, entre intrigado e perplexo, as abundantes notícias que à figura do nosso primeiro-ministro têm sido consagradas nos últimos dias, em especial pelo seu jornal. Provocadas por um singular episódio de amnésia, tais notícias provêm, antes de mais, daquela íntima ambição que todo o jornalista, mesmo o mais obscuro, em segredo alimenta: apear, lá da peanha onde galhardamente se equilibra, um governante, seja ele primeiro-ministro, ministro ou, se a tal obrigar a carência de vítimas disponíveis, um efémero secretário de Estado.

Para isso dispõem os senhores jornalistas de um termo com que generosamente municiam as suas congeminações jornalísticas: polémica! Já reparou a senhora Diretora na estranha frequência com que na nossa pacata terra estalam as “polémicas”? Seja uma diferença de opinião quanto à ingente questão do preço da arroba da batata, seja uma discussão acerca da cultura da alfarroba, seja o caso temível de uma disposição municipal para o singelo arranjo de um jardim público – desde logo, conforme nos é dito, está instalada a “polémica”! Palavras mais brandas ou mais floridas, como “controvérsia”, a amena “divergência” ou a tauromáquica (longe vá o agouro!) “divisão de opiniões”, nenhuma delas serve ou convém. “Polémica”, sim, e de forma a que rolem cabeças. Com menos do que isso não se satisfaz a gula dos nossos plumitivos.

Pois agora mesmo brotou uma polémica – e das grossas! E o jornal que a senhora Diretora comanda, com inigualável zelo, é a fons et origo de muito do que se tem dito acerca de uma questão no mínimo embaraçosa: a memória do senhor primeiro-ministro, confessa-o ele mesmo, não tem funcionado bem, quanto a uns supostos proventos embolsados em anos mais do que remotos. Não há, neste nosso recanto onde florescem as laranjeiras, cronista, fazedor de opinião, modesto periodista ou ardente militante político que não se tenha pronunciado sobre o tema. E bem melindroso é ele, já que, dizem alguns com pérfida intenção, quem nos governa deveria ser dotado de uma memória mais ágil e mais expedita. Pois eu, senhora Diretora, contrario, e com convicção forte, um tal argumento. E direi porquê, se a sua paciência e o seu bem escasso tempo mo consentirem.

A primeira e mais fácil refutação daquela tese vem-me da recordação (esta sim, bem viva) de um lamento que um dia ouvi ao senhor conde de Gouvarinho. Queixava-se o digno conde precisamente da sua fraca memória; e dizia que, depois de ter lido, bem concentrado, os grossos volumes da História Universal de César Cantu, tudo se lhe varrera! Ora, pergunto eu: não se diz por toda a Lisboa e mesmo para lá do seu termo, que o senhor conde de Gouvarinho foi um estadista e dos bons? Não ficaram os habitantes da longínqua Luanda a dever-lhe a luminosa iniciativa da criação de um teatro normal, como inegável elemento de civilização? Nalgum momento a falta de memória do conde prejudicou o empenho vigoroso, sempre por ele posto na resolução dos altos negócios do Estado?

Só ao nosso primeiro-mnistro não se perdoa a falta de memória! E tudo por causa de uma vil questão de pecúnia! É bem verdade que já tivemos, há longos séculos, um monarca que ficou conhecido como “de boa memória”. Mas de então para cá muita água correu sob as pontes, muitos negócios se fizeram e desfizeram e muito se esgarçou o conceito de memória. Queriam talvez os escribas a seu serviço que o nosso primeiro-ministro fosse contemplado com a mesma “boa memória” que para todo o sempre aureolou a imagem do senhor D. João, primeiro de Portugal com esse nome. Desenganados podem ficar, porque no nosso governante-mor não se cultiva tal “boa memória”.

Muito bem anda ele por desprezar esse atributo. Um tal proceder é, de resto, coerente com os hábitos e com os modos de agir e até de ensinar, solidamente implantados no país que lhe tocou governar, com sacrifício e com paciência beneditina. Basta ver que a falta de memória é aquilo que mais se cultiva, como explicação irrefutável, nos nossos respeitáveis tribunais. Isto, claro está, quando eles funcionam… (Honni soit qui mal y pense!). A testemunha viu o facínora anavalhar o vizinho? Não se lembra. O arguido proferiu o insulto de que se queixa, na barra do tribunal, o honrado cidadão? Desvaneceu-se-lhe da mente. O agente da autoridade assistiu à infração? Não tem presente tal coisa. Algum magistrado prudente rebate a falta de memória que em geral ataca os portugueses, como epidemia que grassa entre povos desmazelados e mal nutridos? De modo algum.

Além disso, não pertence o senhor primeiro-ministro à geração dos que, em Portugal, foram educados sem recurso às crueldades da memorização? Pertence, é claro, como bem mostra a sua idade, ainda em viçosa juventude. Nalguma ocasião foi ele atormentado por quem impunha, com o sobrolho franzido, que o tenro aluno, ainda envergando juvenis calções, desfiasse, de cor e salteado (como em tempos lacustres se dizia), o rol dos reis da primeira dinastia, a malvada tabuada dos nove ou o vetusto teorema de Pitágoras? Não! Nunca! E alguma falta lhe fizeram tais bizarrias? Nenhuma! Digo mais: em tempos que já lá vão e segundo relatam as gazetas, quem hoje é primeiro-ministro tratou, numa empresa bem modernamente chamada Tecnoforma, de fomentar a aprendizagem (ou de “facilitar o negócio”, segundo se diz) de um milhar de funcionários diligentes, destinados a povoar a imensa rede de aeródromos de que Portugal dispõe – e só na Região Centro! Pois bem: fez-lhe falta, para o competente desempenho dessa laboriosa missão, um instrumento tão arcaico e tão bafiento como a memória? Certamente que não.

De modo que, senhora Diretora, é tempo de perguntar: para quê e porquê, então, o clamoroso assédio, tão despropositado e tão insidioso? Apenas, digo eu, para causar cizânia e consumir o tempo precioso de quem nos governa. Mas que não seja por isso: contrariando quantos (e não eram poucos!) já se repoltreavam na suprema gozação de verem a criatura acuada, o senhor primeiro-ministro, esfuracando a memória gasta, lembrou-se, por fim! E ao lembrar-se, tudo esclareceu com cristalina transparência, diante da massa dos que o interrogavam, com sanha mal disfarçada: os tais dinheiros não foram uma “remuneração”, mas sim uma “reposição” por despesas de representação. A mim, que sou pessoa crente na palavra do meu concidadão, seja ele quem for, tal explicação é-me cabal e suficiente. Para mais, veio ela fazendo parelha com uma razão tocante: o senhor primeiro-ministro (disse-o ele, com sinceridade comovente) é uma pessoa “remediada”. Aí está, com a solidez de uma verdade de bronze, a condição de vida que os portugueses adoram e estremecem: não se é rico, não se é pobre, é-se honradamente “remediado”. E assim ficamos por aquele meio termo morno de que esta nossa Pátria de tintas suaves e doses moderadas tanto gosta. Há expressão mais eloquente para bem dizer da grandeza de uma estadista? Não há.

Estou certo de que concordará comigo. E mais certo fico de que tratará de meter, na retorcida mente dos seus jornalistas e cronistas, as convicções que desataviadamente venho entregar-lhe. A tudo acrescento a manifestação da minha fidelidade de leitor regular do seu jornal e a expressão do meu muito apreço por quem o dirige e me honra com a sua amizade.

Carlos Fradique Mendes


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