terça-feira, 16 de março de 2021

Carta de Luís Osório ao DR.. Daniel Serrão

 POSTAL DO DIA

Carta a Daniel Sampaio
(como consegues resistir, Daniel?)
Daniel
Desliguei ontem o telefone com a urgência de te escrever logo a seguir. Ficam sempre palavras por dizer mesmo quando não as economizamos.
Escrevo-te então uma carta sem selo e necessidade de correio azul. Uma carta que partilho com quem me lê. Uma carta sobre a amizade, sobre uma profunda amizade que começou como se não fosse nada.
Lembras-te com certeza. Fomos convidados, mais a Ana Drago, para um programa de televisão que a RTP quis que se chamasse Conversa Privada. Fui à primeira reunião com a ideia de que o meu papel seria o de perguntador, afinal queriam as minhas opiniões.
Estavas na reunião, conseguiste sorrir quando vos disse que não estava interessado em participar – as minhas opiniões não interessavam a ninguém, recordo-me de ter dito; sobretudo quando confrontadas com as tuas, deixei nas entrelinhas. Fiquei ainda assim de pensar umas horas. Não precisei delas porque me tranquilizaste numa conversa. Senti-me em casa.
O programa aconteceu. E outros projetos se sucederam. A partir de um livro teu, Vagabundos de Nós, encenei uma peça, no Teatro Maria Matos, com a Márcia Breia e o Nuno Lopes. Uma mãe em palco com o fantasma de um filho. Aproximámo-nos mais, ficámos amigos. Perto de ti já não me sentia em casa, estava em casa. Escreveste o prefácio de um livro que fiz em conjunto com o meu pai. Ajudaste-me a pensar um documentário, ainda inédito, que conta a história de uma casa habitada por mulheres com problemas mentais. Amparaste-me na morte da minha mãe. Estiveste quando o meu pai resolveu que já chegava de tanto combate pela vida.
Nestes anos, vi-te a atender telefonemas de doentes. A orientar pessoas à beira do abismo e prontas a tudo se, no outro lado da linha, não te sentissem presente. Sempre calmo, a dizer-lhes o que precisavam ou tinham de ouvir, a pedir-lhes provas de confiança, a inquietares-te ao desligar. Um mundo de choro, de inferno profundo, de um sofrimento no limite do tolerável.
Como consegues resistir, Daniel? Como consegues resistir mantendo a capacidade de te emocionar quando desligas o telefone ou um doente te sai do gabinete?
Vi-te a tratar de jovens adolescentes. Pais e mães aterrorizados pela ameaça de perderem para sempre os seus filhos. Miúdos que se mutilam para substituir a dor psicológica por uma mais suportável dor física. Escreveste livros acerca deles, sobre muito do que neste mundo é indizível, salvaste centenas de vidas e continuas a ficar apavorado com a mera possibilidade de acordares a meio da noite com o desespero de alguém. Telefonemas a anunciar pontos finais parágrafos.
Almoçámos muitas vezes no Pote. Chegámos a levar o João Almeida, empregado do restaurante e nosso amigo, ao programa. Falou-nos do que foi a luta da sua vida, o que sentiu no primeiro dia de trabalho numa tasca de Lisboa quando, com 14 anos, ali chegara sozinho, medroso, mas pronto a enfrentar as dificuldades. Sei bem o quanto insististe para contar a sua história, o quanto admiras quem luta com esperança e coragem quando, à sua frente, apenas existem cabos que parecem inultrapassáveis.
Nunca te contei, vos contei, o quanto fiquei feliz de uma das vezes que visitei a vossa casa. Discutiste numa sala ao lado com a Maria José, uma pequena discussão familiar sem importância, creio que por causa de umas coisas fora do sítio ou de um favor que te esqueceste de fazer à pessoa que amas e com quem partilhas a vida. Senti-me radiante por perceber que já não faziam cerimónia, era como se não estivesse ali – depois voltaste para onde eu estava e disseste que a felicidade também era isto. Senti-me em família.
Tu e os teus três filhos. Sportinguistas de alma, coração e lugar cativo. Tal como Jorge, teu irmão.
Uma família que fiz minha.
Levei-te o Afonso a tua casa uns dias depois de ter nascido.
E compraste um vestido para a Benedita – tão bonito, querido Daniel.
És a pessoa que um dia eu gostaria de ser.
A pessoa que um dia ambiciono ser.
Até já.
Aconteça o que acontecer será sempre até já.
LO
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Rogério Manuel Madeira Raimundo, Fátima Guimarães e 1,2 mil outras pessoas
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