sábado, 4 de outubro de 2014

COREIA DO NORTE...


O PAÍS MAIS FECHADO DO MUNDO – FOME
Descubra como a fome se transformou num mecanismo de poder utilizado pelo estado norte coreano para definir quem vive e quem morre, quem é forte o suficiente para contribuir com o Partido e quem é fraco para tentar combatê-lo.


por Rodrigo da Silva27 de julho de 2014



inShare




“Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.”

- Miguel Torga

Há um monstro que habita o interior do país mais fechado do mundo. Sua existência não é fruto da modernidade. Tampouco é uma invenção da mitologia milenar. Há poucos habitantes que não tenham experimentado de sua tirania e ainda menos que desconheçam vítimas derradeiras da sua crueldade. No país mais fechado do mundo um monstro invisível exerce seu poder impiedosamente, destruindo e amaldiçoando – ele atende pelo curto nome de fome.

No tempo dos czares, os russos tinham um cético ditado que afirmava que “depois da tempestade vem a inundação”. Foi com os próprios russos – e o tempestuoso colapso da União Soviética nos anos 80 – que o monstro da fome inundou os campos norte coreanos, exercendo pleno domínio sobre os destinos de uma nação há décadas estagnada pela economia centralizada. No início, a população foi orientada a se alimentar no máximo duas vezes ao dia. Em pouco tempo acabou a comida.

Ainda que a maior parte dos norte coreanos tenha lidado com privações nutricionais durante décadas, a Marcha do Sofrimento (1994-1998) foi um evento central na vida de cada cidadão. O colapso soviético evidenciou o profundo grau de dependência da precária economia norte coreana. Para completar, a crise veio acompanhada de verdadeiros dilúvios. Depois da queda do comunismo, foi a vez do céu desabar. Apenas num condado em Pyongsan, em agosto de 1995, 877 milímetros de chuva foram registrados em meras 7 horas. De acordo com as Nações Unidas, as inundações que assolaram o país foram responsáveis por destruir cerca de 1,5 milhões de toneladas de reservas de grãos. Com a fome generalizada, na colheia do ano seguinte, camponeses famintos devoraram pequenas espigas de milho ainda em formação, destruindo metade da já combalida colheita. A fome era um vírus que se alastrava rapidamente.

Acredita-se que apenas em meados da década de 90 a fome tenha dizimado mais de 1 milhão de norte coreanos – o equivalente a mais de 5% da população. Se transferíssemos uma taxa de mortalidade semelhante aos Estados Unidos, 12 milhões de pessoas estariam mortas pela falta de comida. O governo norte coreano abastecia apenas 6% da população com seu programa de alimentação; os cidadãos agraciados recebiam irrisórias 128 gramas de comida por dia, suficientes para preencher uma xícara – o equivalente a cerca de 25% do mínimo recomendado para a ingestão diária de calorias.

Desde então, organizações internacionais falam em mais de 3,5 milhões de mortos pela fome e acredita-se que 1/3 da população lide com a miséria. Mais de 62% da população depende exclusivamente das rações alimentares fornecidas pelo estado – que há 3 anos diminuiu a ingestão diária de alimentos de 1400 calorias para 700 calorias (apenas a título de comparação, um europeu saudável consome entre 2000 a 2500 calorias por dia). Segundo o Programa Mundial de Alimentos da ONU, 57% da população não têm comida suficiente para se manter saudável. Além disso, 37% das crianças menores de 6 anos foram atrofiadas devido à desnutrição crônica – 2/3 delas estão abaixo do peso. A fome também elevou o índice de cegueira no país, um dos mais altos do mundo. E isso sem falar nas constantes denúncias de canibalismo.

Devemos lembrar que embora a península coreana seja relativamente pequena, ela é quase tão longa quanto a Itália. As condições naturais e climáticas das partes norte e sul são absolutamente distintas. No norte, as montanhas cobrem a maior parte do território e o clima é duro e continental. Seu potencial energético é tamanho que, antes da divisão, 90% da eletricidade da península vinha da região – uma situação radicalmente oposta à atual, como mostram imagens noturnas de satélite. Apesar disso, a pequena superfície cultivável do país (apenas 21,5% do território norte coreano é apropriado para a agricultura, o 150º país nesse quesito em todo mundo) requer um forte investimento em fertilizantes. O solo encontrado na península coreana não é muito fértil. Alguns lugares no sul são cobertos por terra vermelha; o resto da terra é ainda pior. Isto significa que altos rendimentos podem ser conseguidos apenas por constantes fertilizações do solo.



Na tentativa de diminuir as tensões, por uma década a inimiga Coreia do Sul ajudou a preencher a lacuna deixada pelo fim dos subsídios da União Soviética, doando anualmente à Coreia do Norte meio milhão de tonelada de fertilizante. Graças a essas medidas, Kim Dae Jung, presidente sul coreano, ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 2000. A Sunshine Policy, como ficou conhecida, durou até 2008. Desde então, um fertilizante feito com cinzas misturadas a excrementos humanos – chamado toibee – é recolhido de banheiros públicos em cidades e vilas de todo o país durante o inverno. De acordo com uma organização filantrópica budista com informantes na Coreia do Norte, fábricas e empresas públicas recebem ordens para produzir duas toneladas de toibee por inverno. O excremento da população foi a solução encontrada pela revolução norte coreana para tentar amenizar a fome que assola o país. Mas apesar da iniciativa, seus fertilizantes orgânicos não fazem frente aos produtos químicos dos quais as fazendas estatais dependeram por décadas, seja da União Soviética, seja da Coreia do Sul.

Na década de 50, a região sul da península era uma das mais miseráveis do mundo. Passado décadas de profundas mudanças institucionais, a Coreia do Sul se tornou um dos líderes globais em segurança alimentar. Na Coreia do Norte, em contrapartida, como narra a jornalista americana Barbara Demick em seu livro “Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea”, não bastasse a distância natural da população em relação a um pedaço de carne – quando muito presente nas refeições em dias de celebração à vida da família Kim – é preciso uma boa dose de coragem para comprar carne no mercado negro. A chance de estarmos lidando com um pedaço de carne humana disfarçada de carne de carneiro é considerável.

A fome se transformou num mecanismo de poder utilizado pelo estado norte coreano para definir quem vive e quem morre, quem é forte o suficiente para contribuir com o Partido e quem é fraco para tentar combatê-lo. Alimentando a população faminta com migalhas que variam de tamanho conforme o grau de lealdade, enquanto se empanturra com os mimos produzidos pelo capitalismo, a família Kim permanece intacta há décadas no poder guerreando com o estômago de cada cidadão.

O monstro que assola o interior do país mais fechado do mundo é um aliado a serviço da revolução.

Sem comentários:

Enviar um comentário