sábado, 12 de agosto de 2023







 Autor de uma obra multifacetada, repartida pelo romance, o conto, o ensaio e o diário,Vergílio Ferreira afirmou-se sobretudo como um dos grandes romancistas do séc. XX. Nascido em Melo, distrito da Guarda, em 1916, e falecido em Lisboa em 1996, o local de nascimento ficou largamente representado nos espaços literários dos seus romances, como representados ficaram outros que ele percorreu, nomeadamente as cidades de Coimbra e de Évora e o seminário do Fundão.

Da aldeia, ficar-lhe-ia a imagem da montanha como local simultaneamente real e mítico, na reverberação da luz estival ou da neve do inverno; de Coimbra (em cuja Universidade estudou e que em 1993 lhe concederia o grau de Doutor Honoris Causa), gravar-se-lhe-ia na memória a Universidade no alto da colina, batida pelo sol, e metonimicamente cristalizada na guitarra dos fados e das baladas; de Évora, onde o autor foi professor lical durante catorze anos, captou Vergílio a luminosidade e a pureza dos seus espaços branços e a sua mítica ancestralidade. A contrastar com tudo isto, vem o seminário como espaço de clausura, de restrição das liberdades individuais, de terror e de princípios morais opressores.

Nos casos em que se trata de representar um real de características eufóricas (o que as salas e corredores do seminário de modo algum autorizavam de notar que, ao contrário desta, todas as outras foram experiências de adulto), o Autor procedeu na sua escrita a uma irrealização dos espaços conhecidos e percorridos, transfigurando-os sempre em lugares míticos a reenviar para um espaço originário, não raras vezes poético. Lisboa, sua última residência, ficar-lhe-ia, por contraste, e não obstante o largo tempo em que nela permaneceu, sempre à margem, como lugar de passagem onde se não cria raízes. Daí o irónico desabafo aquando de um acidente naquela cidade, a saber: que tinha sido atropelado e que era muito bem que o fosse, porque não era dali.

Tendo-se iniciado na escrita na década de quarenta do século XX, a primeira fase da sua ficção, com O caminho fica longe (1943), Onde tudo foi morrendo (1944) e Vagão “J” (1946), seria de convergência na estética neorrealista. Mais tarde, no prefácio à segunda edição deste último livro, o único dessa fase que ele aceitou reeditar, o escritor, num balanço autocrítico, que é também de crítica ao dito movimento, demarca-se já dessa estética, deixando expressas as suas preferências por uma outra, de teor existencial, mais preocupada com as questões inerentes ao homem em geral.

Na linha da filosofia existencialista, que teve em Jean-Paul Sartre um dos seus expoentes máximos, e de escritores como Camus e o Malraux escritor da «condição humana», mas tendo ainda, num horizonte mais recuado, Dostoievski, Sófocles e os tragediógrafos gregos, e, mais próximo de nós, Raul Brandão, Vergílio adotará definitivamente como seus os temas da vida e da morte, do amor, da solidão, da sondagem das profundezas do “eu”, na mira de um autoconhecimento que passa necessariamente pelo conhecimento do outro, da arte como forma de «dar a ver» o que a rotina do quotidiano esconde e como depuração da vida. Em última instância, mantém-se uma nunca pacificada questão em torno da «morte de Deus», com o qual Vergílio, contraditoriamente, não cessa de travar um persistente (angustiado?) diálogo, e uma nostalgia de Absoluto ou de Transcendência, como que a solicitar o preenchimento do lugar vazio deixado por esse mesmo Deus.

Colocando, a partir de Manhã Submersa e em quase todos os romances que se lhe seguem, a personagem/narrador no centro do universo narrado, Vergílio Ferreira faz irradiar a partir dela os problemas existenciais, sendo esse recurso, no seu entender, uma forma de «presentificar» a ação para assim ele próprio se aproximar mais do leitor, interpelando-o e comovendo-o. Neste sentido, está o frequente recurso à metaficcionalidade, um dos lugares utilizados por Vergílio Ferreira para pensar a arte dentro da arte ou o romance dentro de romance. E revelando-se este frequentemente, pelas características da enunciação, como o lugar de uma presença emocionada (a do eu que se narra), está aberto caminho para a expressão lírica, o que afeta categorias essenciais da narrativa como o tempo, que ora se desestrutura, originando a fragmentaridade, ora se suspende, transformando o precário tempo da vida das personagens em eternidade, ou como o espaço, que se oferece menos como local da ação do que como projeção de um encantamento irrealizante.

Transversal a toda a problemática da sua ficção está ainda o problema da linguagem como instrumento de comunicação que tanto é fonte de (des)entendimento entre os homens como limitação para dizer situações-limite. Daí a reflexão sobre a linguagem do quotidiano, sobre os (des)encontros que ela possa provocar, a que se opõe a palavra artística, a que nos coloca na senda do invisível, que diz a angústia, mas também a fascinação e o «puro espanto de existir».

Embora os livros anteriores a Aparição (inclusivamente Mudança, de 1949, cujo título é já tido como indicativo de uma viragem) viessem a anunciar uma evolução, é com este livro de 1959 que Vergílio será definitivamente consagrado como representante do romance de feição existencial. A partir daí ele glosará obsessivamente os mesmos temas, embora estes sejam expostos segundo diferentes estruturas narrativas e desenvolvidos a partir de um problema novo ou perspetivado de ângulo diferente. Fá-lo distanciando-se cada vez mais da narrativa dita clássica, com uma história bem contada e uma ordenação temporalmente sequenciada. A justificação apresentada é que vivemos na época do fragmento, que a solidez de uma narrativa una e coesa não se coaduna com o nosso tempo, ao qual falta unidade e coesão. De resto, afirma também, não lhe interessa contar histórias à maneira do século XIX, mas comover a «abalar» o leitor, deixando-lhe um problema para refletir.

Tendo, por mais de uma vez, sido apontado como «autor de um só livro», o escritor não se mostrou muito agastado com a afirmação, que geralmente lhe chegava como forma de crítica. E isto porque, no dizer do próprio, cada novo livro (e para ele «um livro é um registo do nosso diálogo com o mundo») pretendia tão-só apresentar um determinado estádio da sua relação com esses temas que o dominavam. Assim se compreendem as particularidades que eles vão assumindo em cada um dos romances publicados: por exemplo, em Aparição havia sobretudo a experiência da aparição de si a si, ou seja, a descoberta do seu eu metafísico; Estrela Polar incide fundamentalmente nas relações do eu com o outro; Alegria Breve, prosseguindo nas mesmas preocupações introduz, de modo mais incisivo, o problema da solidão e da linguagem nova para dizer um mundo novo que se venha sobrepor ao que finda; Para Sempre é aquele onde a busca incessante da palavra mais se mostra, numa tentativa de ligar o verbo primordial ao último que o homem há de pronunciar; Até ao fim (1987) afirma-se, pelas manifestações «artísticas» caricaturais que aí são representadas, como uma contrafação da verdadeira arte e como a pobre herança que o fim do milénio tinha para legar ao seguinte; finalmente, Na Tua Face (1993) constitui uma questionação do escritor sobre o feio em arte, a saber: como é que o feio em arte não tem a fealdade das coisas feias da vida, mas a beleza que a arte lhe acrescenta.

Ensaísta notável, deixou-nos vários volumes de ensaios, uns de índole mais propriamente crítica (v.g., os de Espaço do invisível), outros (Carta ao FuturoDo Mundo Original Invocação ao Meu Corpo) aproximando-se, pela criatividade no tratamento dos temas e pela qualidade da escrita, da literatura. É isso visível em recursos técnico-formais como a figuração estilística, a estrutura sintática e o ritmo da frase, recursos que chegam a configurar certas páginas dessa prosa reflexiva como autênticas páginas de prosa poética.

Conta-Corrente, diário em nove volumes, cinco da primeira série e quatro da nova série, revela o quotidiano de um autor que se decide por um género que dantes várias vezes recusara, por se dizer avesso à escrita da intimidade. Não obstante isso, acabou por lhe não resistir, embora, sempre que sobre o mesmo diário se pronuncia, o coloque num lugar à parte, como se não fosse digno de se irmanar à parte mais nobre da sua obra, sobretudo ao romance. Seria este, pelo que da sua escrita foi desabafando no próprio diário, o género a que Vergílio Ferreira se dedicou com maior aplicação e maior esforço, por ser o género que, segundo ele, menos se compadecia com uma escrita «ao correr da pena» ou, ainda nas suas palavras, «de comportas abertas». Mesmo assim, o diário, tal como o romance, foi evoluindo no sentido da depuração e da reflexão intelectual mais elevada. Pensar (1992) e Escrever (2001), este de edição póstuma, a cargo de Helder Godinho, que surgem na lista das obras do Autor como «diário» são escritos fragmentários, frequentemente de caráter aforístico, numerados, e sem a indicação da data, no que se afastam das convenções do género. Todavia, a propósito do primeiro, Vergílio Ferreira achou-lhe uma justificação para esta classificação, designando-o por «diário do acaso de ir pensando». Uma espécie de reflexão ao sabor dos dias, registando, portanto, não o que ele teria vivido, mas o que diariamente se lhe oferece ao pensamento e à escrita.

Na sua vastidão, a obra de Vergílio Ferreira unifica-se nas preocupações temáticas que, sendo gerais, se configuram diferentemente consoante os géneros em que os temas são expressos. E sempre com a liberdade de quem as adapta ao seu jeito, transgredindo fronteiras entre narrativa e lírica, romance e ensaio, enfim, entre géneros ficcionais e não-ficcionais. Por isso também, o seu romance ficou conhecido pela dimensão ensaística que o Autor lhe imprimiu, classificando-o, ele próprio, de «romance-problema», igualmente conhecido por «romance-ensaio». Aliás, na perspetiva de Vergílio, o ensaio será o género que melhor poderá substituir o romance, no caso de algum dia se cumprir a, tão longamente anunciada, morte deste género literário.(Extracto de texto da INTERNET)

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