Ontem, já à mesa, perguntei à minha mãe como me chamava e, na cara dela, uma espécie de sorriso vazio, perplexo
– Como te chamas?
em busca do meu nome, que se vai diluíndo, a pouco e pouco, em si. Repetiu
– Como te chamas?
do seu deserto interior onde apenas, numa vaga escuridão, silhuetas imprecisas, distantes, que não reconhece
– Como te chamas?
suspensa num silêncio oco. Pergunto
– Como se chama o meu pai?
os seus dedos encontram os meus no braço da cadeira
– O teu pai?
Levaram-na ao cabeleireiro porque vinham os filhos jantar, puseram-lhe um anel no dedo, um broche no peito. Quando morrer vende-se esta casa e a casa da praia, a família acaba. O meu pai e o meu irmão Pedro morreram, cada vez me sinto mais entre destroços. Dentro em pouco estaremos distantes uns dos outros, na mesma cidade e distantes. Um telefonema de vez em quanto, raros encontros, esta sombra, que foi a nossa mãe, deixará de unir-nos. De súbito pronuncia o meu nome baixinho
– António
e afasta-se de novo, marchando no seu deserto, indiferente. O
– António
dela não tem o menino que fui dentro, o eco de um eco apenas, um ventinho sem significado remexendo poeiras, os dedos roçando nos meus, pequeninos, suaves. Porque é que deixou que isto acontecesse, mãe, como se ela tivesse culpa de se ir afastando de si mesma, da gente.
– Chamo-me António e o meu pai João
e o que parece um esboço de sorriso num esboço de cara. Recordo o meu pai morto na clínica, o seu perfil indiferente. Recordo o Pedro a acender um charuto. Recordo a minha mãe a cantar
Todos nós temos na vida
Uma ilusão mais querida
Uma ilusão de amor
e não sei se me comovo. Parece-me que mais surpresa do que emoção. Era afinada, ela, gostava de a ouvir. Dava-nos injeções quando estávamos doentes, punha-nos supositórios. O suplício
– Chega-te aqui à luz
de me cortar as unhas
– Não te mexas
e o meu pânico de ficar sem dedos, a tesoura, apesar de diminuta, atroz. Medo do escuro, gritar
– Mãe
e ela, invisível, longíssimo
– Que maricas.
Lembro-me de lhe afirmar, criança
– Sou escritor, sabia?
e a minha mãe um riso divertido, ela que ria pouco, a fitar-me de cima para baixo, onde eu existia
– Já a formiga tem catarro
e, passado um bocadinho
– Escritor, imagine-se.
O meu pai, à mesa
– Com que então escritor?
A cheirar a tabaco de cachimbo e a brilhantina. Não quero perder isto, não quero perder tudo isto.
Todos nós temos na vida
Uma ilusão mais querida
Uma ilusão de amor
e, em lugar da ilusão de amor, silhuetas imprecisas, distantes. Esta não é a minha mãe, estes não são os meus irmãos, este não sou eu. E a casa, meu Deus, tão velha agora: esta não é a minha casa, é o sítio onde a minha mãe tropeça, com uma senhora a tomar conta dela e a dar-nos notícias
– Um bocadinho confusa, coitada
e não é que esteja confusa, minha senhora, eu é que não entendo. Já não existe a capoeira, já não existe o limoeiro, o quarto onde dormi tantos anos com o João, o Nuno, de babete, abraçado a um Pluto de borracha. O meu pai no escritório, ao microscópio. Cigarros às escondidas. Uma cobra no jardim. O vizinho polícia
– Tão bonitos, tão loiros
o louco sempre com gaiolas de passarinhos, a taberna na rua que conduzia ao cemitério e que se chamava Na Volta Cá Os Espero. Houve protestos e passou a chamar-se A Tradicional Da Volta, eternamente cheia de bêbedos aos gritos, aos abraços, a sentarem-se no chão.
– A maré está alta
resmungavam eles
– Hoje a maré está alta
E nós mudávamos de passeio, assustados. A mercearia do Careca. O senhor Jardim, distinto, na drogaria, tão simpático. A empregada que me roubou o fio de oiro com a medalhinha de Santo António que o meu avô me deu em Pádua. Ao protestar gritou-me
– Vá meta isso no cu da sua mãe
e eu fui. Mas o fio desapareceu para sempre, conforme o meu nome desapareceu para sempre da cabeça dela. Silhuetas imprecisas, distantes. Chamo-me António. Julgo que me chamo António, quieto no meu deserto, indiferente. Quando acabar esta crónica levanto-me e, como a minha mãe, principio a andar ao acaso, cantando para dentro
Todos nós temos na vida
Uma ilusão mais querida
Uma ilusão de amor
Enquanto um miúdo loiro me observa em silêncio, maravilhado.