segunda-feira, 5 de julho de 2021

DE António Lobo Antunes...



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 Naquela época os passeios eram para mim o prolongamento natural do corredor da casa, apesar de certas mulheres em certas esquinas onde mais tarde fui deixar a infância como um casaco usado. Trouxe de um quarto de que me lembro mal e de uma convulsão tão rápida que não consigo lembrar-me, a certeza de me ter tornado, de repente, mais velho e mais alto. E como uma graça nunca vem só trouxe igualmente nove notas de cem escudos em lugar da nota de mil que lá deixei. Dado que o dinheiro pertencia à minha mãe fui de parecer que ela só tinha a lucrar com tão fecunda multiplicação. Não necessitei de responder à pergunta

— O que sucedeu aos cem escudos que faltam?
já que dois ou três dias volvidos o farmacêutico o fez por mim, poupando-me desculpas e mentiras com injecções de penicilina e lavagens de permanganato de manhã e à noite. E a minha mãe não me ter achado assim tão velho e tão alto visto que me aplicou uns tabefes que ela própria se encarregou de prescrever. O farmacêutico levou precisamente as nove notas de cem escudos para responder no meu lugar. O tratamento da minha mãe foi grátis. E avisou-me que não dizia nada ao meu pai porque receava que ao tratamento deste
( apesar de grátis também)
se juntasse um terceiro tratamento na Urgência do Hospital, secção de Equimoses e Fraturas.
António Lobo Antunes — Segundo Livro de Crónicas.

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