quinta-feira, 29 de abril de 2021

Entrevista de Onésimo Teotónio ao "EXPRESSO"

 SOCIEDADE

“Em Portugal, fala-se muito e ouve-se pouco”

23 ABRIL 2017 18:00

Nelson Marques

Nelson Marques

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Jornalista

Tiago Miranda

Tiago Miranda

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Fotojornalista

Tiago Miranda

Diz que não emigrou, alargou fronteiras”. Professor catedrático da Universidade de Brown, há 45 anos nos EUA, nunca deixou de vir e de olhar para Portugal. Dessa sua obsessão nasceu um novo livro

Já perdeu a conta às vezes em que lhe trocaram o nome. Dentro dele cabem muitos Onésimos, que encaixam como matrioskas: é professor no departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown, nos EUA, filósofo, ensaísta, cronista, escritor de ficção e de teatro, contador de histórias e de anedotas... É um açoriano de São Miguel, que fez o seminário na Terceira, um português com passaporte americano. Aos 70 anos, pai de três filhos de dois casamentos, viaja sempre que pode, mas continua apaixonado por Portugal, hoje muito longe do “país triste e deprimido” que deixou nos anos 60. Falámos com ele em Lisboa, onde veio apresentar o seu mais recente livro, “A Obsessão da Portugalidade”. Eis Onésimo Teotónio Almeida ou, simplesmente, Onésimo. Começámos a conversa por aí.

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Fecha em: 58s

Onésimo, esse nome vem de onde?
Foi o meu pai que o escolheu. Foi ter com o padre, pediu-lhe uma lista de nomes. Foi ao mais estranho de todos, ficou Onésimo. Teotónio é o nome do meu padrinho. O meu pai não sabia que Onésimo é um nome clássico, que vem mencionado na Bíblia. Era um escravo ladrão que São Paulo converteu na prisão. Ironicamente, virou padroeiro dos juízes na Grécia. Fui casado com uma grega durante 17 anos.

Um filósofo casar-se com uma grega é muito coerente.
Foi uma coincidência. Ela é de Engenharia, começámos a namorar um mês depois de eu entrar na Universidade de Brown.

Costumam trocar-lhe muito o nome?
Ah, sim, sempre. Nos Açores, toda a gente conhece é Nemésio, por isso muitos chamam-me Nemésio. Estou habituadíssimo. Tenho uma coleção grande de variações do meu nome.

Quantas são?
Devem ser 40 ou 50. Há variações delirantes, mas a mais interessante é do meu último nome. Foi uma chinesa, aluna de linguística, que me enviou uma carta dirigida ao Prof. Almerda. [risos]

Qual é a sua primeira memória 
de infância?
Não sei... Foi uma infância feliz. Tive um tio que era professor na escola primária e teve sempre muito interesse pelos sobrinhos. Desde cedo meteu-me livros nas mãos. Eu adorava livros, comecei a ler com cinco anos. Além disso, era um grande didata, fazia cartões para ensinar a ler, jogos, etc. Também contava muitas histórias e eu adorava ouvi-lo.

E o mar?
Ir ao mar era uma coisa extraordinária. A minha freguesia ficava ainda a dois quilómetros do mar, para os Açores era muito longe. Íamos e vínhamos a pé, os mais velhos levavam os mais novos.

Quando é que começou a imaginar o que é que havia para lá do horizonte?
Nunca tive a sensação de estar preso na ilha. O meu mundo era aquilo. E não era só eu que pensava assim. Uma vez estava em São Jorge, já casado com a minha primeira mulher, estávamos na Fajã do Ouvidor, que fica do lado norte. Do outro lado, fica a Calheta. Uma garota percebeu que a Mary tinha um leve sotaque e perguntou-lhe de onde é que ela era. A Mary respondeu-lhe que era de muito longe, da Grécia, e a miúda retorquiu: “Isso fica para lá da Calheta?” [risos] O nosso mundo era aquele.

Tiago Miranda

Como eram os Açores dos anos 50?
Era um mundo imenso, não era nada pequeno. As outras ilhas eram longíssimo. Quase ninguém ia de São Miguel para as Flores ou Corvo, era raríssimo ir-se à Terceira. Só vim ao continente com 21 anos, a um acampamento internacional de escuteiros.

O que é que os seus pais faziam?
Os meus dois avós tinham terras. O meu avô materno esteve na América e regressou em 1929, na altura da Grande Depressão e jurou nunca mais pôr os pés lá. Mas veio com dinheiro suficiente para comprar umas terras, vivia abastadamente. O meu outro avô tinha uma lavoura grande e o meu pai trabalhava com ele. Tinham 100 e tal vacas, mas um dia houve uma doença que matou muitas delas e o meu pai ficou com problemas económicos, então colocou-se a hipótese de ir para a América.

Foram em 1966.
Os meus pais e a minha avó materna, que tinha nascido lá. Uma tia minha tinha o sonho de juntar os irmãos na América: trazer um que estava no Brasil, outro do Canadá, e a minha mãe. O problema é que o meu avô materno tinha jurado não voltar. Quando ele morreu, foram em menos de um ano. Os irmãos que estavam no Brasil e no Canadá também. Ficou a família toda a viver em casas umas a seguir às outras, em Fall River, no Massachusetts.

Essa sua avó teve uma influência muito grande na sua vida.
Gostávamos muito dela. Era extremamente generosa, estava sempre preocupada com os netos. O meu avô era uma figura presidencial, mas o primeiro-ministro na família era a minha avó. Era ela que administrava o dinheiro. Era mais liberal do que a minha mãe. A minha mãe já foi educada no salazarismo, a minha avó era do período da República. Lembro-me de a minha mãe comentar uma vez sobre o facto de uma pessoa da família namorar com outra que era divorciada. “Isso não é direito”, disse ela. E a minha avó respondeu-lhe: “Ó mulher, o direito do anzol é ser torto”. Tinha uma grande capacidade de entender a relatividade das coisas. A minha outra avó preocupava-se muito com os nossos estudos, punha os meus tios a ensinar-nos francês e inglês.

A sua mãe dizia que o Onésimo era “o seu pai chapado”.
E era mesmo, fisicamente somos muito parecidos. Mas ela não dizia isso como um elogio. O meu pai era um pouco indomável e ela dizia que eu era ‘desarrematado’ como ele, era ‘vulcânico’ segundo algumas pessoas. Quando era jovem, tinha reações e respostas pouco reverentes.

Mesmo no seminário? Foi para lá com 11 anos.
Segui a vocação do meu tio. Nos Açores, e sobretudo em São Miguel, havia uma religiosidade medieval, tudo começava e acabava na religião. E o seminário era considerado um lugar de muito mais respeito e prestígio do que o liceu. Primeiro fui para o seminário menor de Ponta Delgada e depois fui para a Terceira.

Como era a vida lá?
Os dois primeiros anos eram preparatórios, era uma espécie de colégio interno. O dia era esperar pela hora de almoço para depois jogar futebol. Na minha freguesia não havia campos, íamos jogar para os pastos e éramos escorraçados pelos donos. Depois, na Terceira, o seminário era de facto um lugar especial, tinha um leque de professores extraordinário, era praticamente uma universidade. Nos anos 60, começou a grande esperança de a Igreja mudar. Éramos influenciados por tudo o que vinha de fora, sobretudo pelos jornais e revistas de esquerda francesas. Recebíamos até livros proibidos vindos de Lisboa.

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