quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

SOBRE EDUARDO LOURENÇO, in INTERNET

 Professor, filósofo, escritor, crítico literário, ensaísta, interventor cívico, várias vezes galardoado e distinguido, Eduardo Lourenço foi um dos pensadores mais destacados da cultura portuguesa, escrevendo várias obras sobre a sociedade e identidade portuguesa. O Labirinto da Saudade e Fernando, Rei da Nossa Baviera são duas das suas principais obras.


Eduardo Lourenço Faria nasceu em 23 de Maio de 1923, em S. Pedro do Rio Seco, no concelho de Almeida, na Beira Alta. “Vindo de uma pequena aldeia e de uma família conservadora, encontrou em Coimbra um ambiente mais aberto e propício a uma reflexão cultural que sempre haveria de prosseguir”, refere o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses”, editado em 1998.

Frequentou o curso de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde foi depois professor assistente. Emigrou para França em 1949, ano em que é publicado o seu livro de estreia, Heterodoxia I, “um dos mais nobres e perturbantes discursos ensaísticos de toda a nossa história literária”, classificou o professor e ensaísta Eugénio Lisboa.

Foi leitor de Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Hamburgo e Heidelberg, na Alemanha, e Montpellier, em França, depois professor de Filosofia na Universidade Federal da Bahia, no Brasil. Também foi leitor a cargo do Governo francês nas Universidades de Grenoble e de Nice.

Entre as várias distinções que Eduardo Lourenço recebeu, estão o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon (1988), o Prémio Camões (1996), o Prémio Pessoa (2011) Em Portugal, era Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, assim como da Ordem do Infante D. Henrique e da Ordem da Liberdade. Era também Oficial da Ordem Nacional do Mérito, Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras e da Legião de Honra de França.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, evocou e agradeceu a Lourenço, que considerou ser, desde o início da segunda metade do século XX, o “mais destacado intelectual público” e uma “figura essencial” de Portugal. Eduardo Lourenço foi um pensador, arguto e sensível como poucos e incansável combatente do caos dos dias”, reagiu a ministra da Cultura, Graça Fonseca.

Na juventude, escreveu poesia e narrativa, mas passou para uma literatura mais ensaística. “Em relação à ficção – com a minha falta de sentido do concreto –, muito cedo pensei que não teria capacidade de me tornar naquilo que eu mais queria ser: um romancista, um ficcionista”, disse à revista Ler, em 2008.

Conhecia Dostoievsky, Kafka e Camus, mas o primeiro encantamento literário foi com Júlio Dinis, ainda criança. Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Sartre estavam nas suas primeiras leituras. Apesar destas referências, “a sua mundividência foi associada à de um certo existencialismo, sobretudo por volta dos anos 50, altura em que colaborou na Árvore e se tornou amigo de Vergílio Ferreira”, descreve o Dicionário Cronológico de Autores Portugueses.

Refletia e dialogava, de certa forma, com as obras de Camões e Pessoa e, no prefácio a uma reedição do Labirinto, datado de Vence, 25 de Abril de 1978, sublinha que não escreveu esses ensaios “para recuperar um país que nunca perdi, mas para o pensar com a mesma paixão e o mesmo sangue frio intelectual com que o pensava quando tive a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro da alma”.

As ideias do livro estão ligadas aos seus interesses de ordem filosófica quando mais jovem: o tema essencial é a problemática do tempo, que se pode ver e tratar de muitas maneiras, sendo a saudade uma espécie de vivência da temporalidade que sentimos de forma muito particular. Na saudade, diz Lourenço, “recuperamos o que em princípio devia ser irrecuperável – e é por isso que nos reconhecemos nessa espécie de sensibilidade que pensamos identitária e nos preocupamos muito com o sentido da vida em geral e o do tempo em particular”.

O livro, porém, em que se sente mais presente, é o Pessoa Revisitado. Pessoa tem uma tal imagem, é um tal ícone da nossa cultura, como não há outro, tirando o imortal Camões. Das mais perigosas e impercorríveis, porque um simples poema seu resume uma aventura cultural e poética sem confronto com qualquer outra nossa contemporânea. Segundo o ensaísta, Pessoa deixou-nos a ideia que o eu é uma construção contínua e um sonho de si mesmo; levou à letra uma das grandes experiências da visão cultural da Europa em todo no seu esplendor: a vida é um sonho.

Apaixonado pela literatura, referia-se aos livros como “filhos” e dizia que “estar-se sem livros é já ter morrido”. Em 2008, nessa conversa com a Ler, dizia que “dificilmente” conseguiria imaginar o mundo sem livros em papel. Porque o relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas. Faltará qualquer coisa quando a nossa relação com eles for puramente electrónica. Nos novos instrumentos, não haverá pó. É só o que lhes falta. Esse pó quer dizer o tempo, quer dizer a própria essência da nossa vida.”

Em 2018, foi protagonista e narrador da sua própria história, num filme de Miguel Gonçalves Mendes, que teve antestreia a 23 de Maio, dia em que Eduardo Lourenço completou 95 anos. Intitulado O Labirinto da Saudade, o filme adapta a obra homónima de Lourenço e traça uma viagem através da cabeça do pensador, constituindo-se como uma “homenagem em vida” do realizador ao ensaísta.

Nesse mesmo ano, a propósito da polémica em torno de um possível “Museu das Descobertas” em Lisboa, devido sobretudo ao nome e ao programa, que foram classificados como “neocoloniais”, o ensaísta deixou bem clara a sua oposição ao que chamou de “crucificação” do país pelo seu passado colonizador, quando não houve maldade na génese e o mal feito já não podia ser reparado. “Acho extraordinário, num momento em que a Europa é quase toda ela democrática, que, de facto, um país com menos problemas graves e de difícil resolução no mundo seja objecto desta espécie de penitência pública”, lamentou.

Nesse dia, o autor de Fernando, Rei da Nossa Baviera falou sobre o papel de Portugal na história, associando-o a uma “vontade de não abdicar do sonho”, uma “vontade um pouco louca”. “Portugal viajou uma viagem por conta própria, um sonho, e esse sonho não tem fim e não terá fim”, disse Eduardo Lourenço.

Eduardo não é o ‘ator’, mas o sujeito do filme, que é sobre si e o seu pensamento, a sua visão da história e do destino de Portugal.
Provavelmente será essa a intenção das pessoas que pensaram e decidiram fazer o filme, e dar-lhe o título Labirinto da Saudade. E essa é, aliás, uma pergunta que vem dos nossos maiores, incluindo o Antero e a geração de 70: como foi possível um país tão pequeno ter tido um percurso tão extraordinário? A dado momento da História do Ocidente, fomos nós que levámos o Ocidente para o Oriente.

E estava talvez mais familiarizado com o cinema do que com qualquer outro meio de expressão porque é o que mais caracteriza a modernidade. “A imagem que nós temos da experiência humana no século em que vivemos é fundamentalmente a que o cinema transmite. Não é a única, há outras expressões, incluindo a música, com a qual aliás o cinema tem uma conexão quase visceral”- e conclui o filósofo: “Somos levados a aceitar que o cinema é como que uma espécie de comentário divino aquilo que se passa e ultrapassa a margem dada pela transcendência da música enquanto tal”.

Quem o ler com atenção percebe que na sua prosa poética, o único tema verdadeiramente sério é a morte. A morte é consubstancial à vida. Porque Annie Salomon, sua mulher, que ironicamente faleceu também no primeiro dia de dezembro há exatamente sete anos, é para E. Lourenço, “um facto consumado sem leitura possível. É um buraco negro numa existência antes do seu próprio fim”.


BIBLIOGRAFIA

Morreu Eduardo Lourenço, gigante do pensamento português, Pedro Rios e Lusa, PÚBLICO, 1-12-2020
“Como foi possível um país tão pequeno ter tido um percurso tão extraordinário?”, José Carlos de Vasconcelos, VISÃO, 1-12-2020

Helena Garvão
Lisboa, 13 de dezembro de 2020


Sem comentários:

Enviar um comentário