terça-feira, 21 de setembro de 2021

Sobre José Gomes Ferreira, in Net-INSTITUTO CAMÕES

 

José Gomes Ferreira

Por Fernando J. B. Martinho

José Gomes Ferreira (1900-1985) nasceu no Porto, em 1900. Publicou em 1918 e 1921, respetivamente, duas coletâneas poéticas, Lírios do Monte e Longe, que mais tarde retirou da sua bibliografia. Só em 1931, depois de ter exercido funções de Cônsul de Portugal em Kristiansund, na Noruega, encontra verdadeiramente a sua voz num poema, “Viver sempre também cansa”, que dá a público na revista presença, nesse mesmo ano.

Esse texto, em que Gomes Ferreira reconheceu, no relato que fez da sua aparição, em A Memória das Palavras, de 1965, o seu autêntico nascimento como poeta, vem a abrir, dezassete anos depois, o volume com que, realmente, se estreia, Poesia – I. Entretanto, tinham saído, entre 1941 e 1944, os dez volumes da Col. Novo Cancioneiro, que constituíram a mais visível afirmação do neorrealismo poético, e na qual José Gomes Ferreira, apesar do convite que, para o efeito, recebeu, não veio a figurar. É, no entanto, desses poetas, a alguns dos quais, a partir de certa altura, o ligam fortes laços de amizade, que se sentirá mais próximo, o que, juntamente com a óbvia orientação social da sua lírica, levou a que se enraizasse, na nossa tradição crítica moderna, a ideia de o situar no âmbito do neorrealismo. Mas tal enquadramento periodológico, embora não totalmente desadequado, tem que ter em conta um certo número de fatores que aconselham a introdução de matizes nessa classificação. Em primeiro lugar, a influência que a obra de Raul Brandão teve no grupo de que fazia parte nos anos 20. No primeiro volume das Memórias, deixará registo do que para ele e para os seus companheiros terá significado o autor de Húmus: «Durante meia dúzia de anos, Raul Brandão foi, sem o saber, o mestre secreto da primeira fornada que, após a Revolução Formal do Futurismo, e embora concordante com todas as novidades do Orpheu e revistas subsequentes, se opôs por instinto ao seu conteúdo aristocrático, em busca aflita de outro Sinal.» Os anos passados na Noruega, e a leitura de autores como Ibsen e Knut Hamsun, não terão senão acentuado o pendor expressionista do seu imaginário já muito marcado por Brandão, na origem, como se sabe, do que houve de larvar expressionismo, sem contacto real com o expressionismo literário alemão, em vários autores do nosso Segundo Modernismo. Depois, não deixe de se assinalar que o poema que atesta o seu verdadeiro nascimento como poeta veio a lume numa publicação, a presença, que, nos começos dos anos 30, era indubitavelmente o ponto de convergência de todos os que, em Portugal, estavam empenhados em praticar e em impor uma ideia de arte moderna. De resto, todo o percurso de José Gomes Ferreira a partir do momento epifânico de “Viver sempre também cansa” se vai pautar pela “Revolução Formal” modernista, e não é possível entender a ampla e conturbada liberdade da sua escrita, o inusitado das suas imagens e da sua sucessão no poema ( «aos cachos», como deixou dito num texto de Elétrico, 1956 ), sem ser no quadro das transformações da linguagem poética operadas pelo Modernismo. O poeta fazia, de resto, questão, numa passagem de Imitação dos Dias, de 1966, de se afirmar «sem saudades de qualquer passado», em sintonia perfeita com o seu tempo, na diversidade de correntes que, dentro das várias artes, se orientariam mais para uma conceção alargada do Modernismo, hoje por muitos aceite, que o não restringisse às tendências inovadoras das primeiras décadas de Novecentos: «Coincido integralmente com a minha época de neo-realistas, de surrealistas, de abstractos, de neo-figurativos, de concretistas, de dodecafónicos, de pesquisadores de timbres, de Maiakovski, de Kafka, de Prokofiev, de Malraux, de Cholokov, de Sartre, de Aragon, de Drummond de Andrade – e aqui proclamo a glória de ter nascido na Idade de Aquilino, Afonso Duarte, Vieira da Silva e Lopes Graça, sem saudades de qualquer passado.» Um outro aspeto aproxima José Gomes Ferreira dos «presencistas», a centralidade do eu na sua obra, não apenas nos livros em verso, mas também nos livros em prosa, como já tem sido sublinhado ( cf. Paula Morão, “O poeta andante, um fingidor em prosa”, José Gomes Ferreira – Operário das Palavras, 2000, p. 23 ). O subtítulo escolhido para a edição da sua poesia, a partir da segunda metade dos anos 70, nos três volumes de Poeta Militante, “Viagem do Século Vinte em Mim”, remete também para a importância da experiência pessoal, para a subjetividade em que se fundamenta a sua resposta à História.

A abrir o 1º volume de Poeta Militante, vem uma nota onde pode ler-se o seguinte: «Poeta Militante é a viagem do século vinte em mim. Ou melhor: o testemunho poético [...] da aventura da sombra de um anti-herói que, perdido nos meandros dos caminhos exíguos do tempo, [...] atravessou em bicos dos pés os segundos, os minutos, as horas, as semanas, os anos de quase um século, mais preocupado com as coisas vulgares do quotidiano nos cafés, nas ruas, nas praias, no campo, do que com acontecimentos merecedores no futuro de longos tratados de estudo volumosos que me inspiraram muitas vezes apenas poema e meio./ [...]». O que há de «protesto», de apaixonada denúncia nestes poemas que se organizam, sob a forma de «diários em verso», em séries ou conjuntos, com datas desfasadas do momento de publicação, é o que, em larga medida, justifica a aproximação ao neorrealismo, para além da indefetível perseguição da «Revolução Impossível». Mas, como a nota de abertura de Poeta Militante sublinha, o espanto, o estremecimento lírico que o move ao canto, nasce mais da vulgaridade do quotidiano do que da excecionalidade dos acontecimentos que moldam a História. É na indecisa fronteira entre o real e o irreal, como nos lembra um dos seus títulos mais emblemáticos, O Irreal Quotidiano, de 1971, que melhor se afirma, afinal, a aventura literária de José Gomes Ferreira, encarada na sua globalidade e sem o artifício da divisão de géneros.

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