David Mourão-Ferreira, poeta do amor, romancista tardio, sedutor subjugado ao fascínio que teve pelas mulheres. O homem que consegue essa ponte extraordinária e quase impensável entre a literatura e o sentimento na voz de Amália Rodrigues.
Intelectual de relevo, a quem a academia não perdoava não ter acabado o doutoramento, apesar de fascinada pela envolvência e profundeza do pensamento que o autor emanava, quer em Portugal quer em Itália (que Mourão-Ferreira amava), quer noutras academias estrangeiras.
Autor dos mais belos poemas de amor e eróticos que a literatura portuguesa comporta, David Mourão-Ferreira foi o gaiato que queria deixar de estudar e que aprendeu a lição que o pai lhe deu na prática, foi o jovem rapaz que fez tropa em Portalegre regozijando-se com a companhia de José Régio, foi o constante apaixonado por uma inconstância de mulheres que lhe passaram a vida, ao longo de dois casamentos. Pela voz de Pilar, a segunda mulher, ecoa-nos ainda essa confissão natural e sempre presente da necessidade da paixão. Foi também o rapazinho que registou quem era em diário e que nunca abandonou os papéis manuscritos, avesso a tecnologia, ainda que fosse a do gira-discos.
David Mourão-Ferreira foi autor de “Música de Cama”, mas era um homem de pudor, mostra-nos este documentário. Tal como nos mostra que, na incapacidade de conduzir – chegou a invadir uma esplanada numa tentativa de aprendizagem – media o pulso às gentes da cidade através das conversas mantidas com os taxistas que o apanhavam.
Lançou o seu único romance aos 59 anos. Passou, contudo, toda uma vida a produzir letras, das mais relevantes e arrebatadoras que podem ler-se em Português. Traduzido, aclamado, recebido com admiração e ânsia por todo o mundo da cultura. Dirigiu um jornal, teve nomeações oficiais e cargos de governação, mas dizer que era de direita ou de esquerda é, podemos ouvir neste documentário, ser “um mendigo da cultura”.
Chegou a uma altura da vida em que entregou a dúvida ao Criador e se rendeu à fé católica. “Em caso de dúvida, o melhor é acreditar sempre”, terá dito o autor que também regista muitos momentos de perturbação existencial, que fixa a angústia de existir.
A avidez do tempo contado – David Mourão-Ferreira nasceu em Lisboa, sua eterna namorada, em 1927 e também nela morreu em 1996 – deixou connosco todas as dúvidas que escreveu, a nossa dívida para com a obra, a dádiva de uma generosidade infinda do autor, na frase recorrente deste documentário: “O que acho cada vez mais extraordinário é a vida, a maravilha de estarmos vivos.”