quinta-feira, 6 de abril de 2023

Texto de José Cardoso Pires, in INTERNET

 In INTERNET, texto de José Cardoso Pires:

" UMA SIMPLES FLOR NOS TEUS CABELOS CLAROS
«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacu­dindo os braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.»
«Marcaste o despertador»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»
«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora, cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do anoitecer...»
«Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me levante para o ir buscar. És de força, caramba.»
«Pronto. Estás satisfeita?»
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar. Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio? Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.»
«- Mais um mergulho - pedia a rapariga.
A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;
- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era como se, com a sua frescura velada, apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos vestir?
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto das ondas através da névoa; ou ainda no rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar, todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.
Paulo apertou mansamente a mão da companheira;
- Embora?
- Embora - respondeu ela.
E os dois, numa arrancada, correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até tombarem de cansaço.»
«Quim... »
«Outra vez?»
«Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada, estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.»
«Lê um bocado, experimenta.»
«Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.»
«- Tão bom, Paulo. Não está tão bom?
- Está óptimo. Está um tempo espantoso.
Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que havia entre ela e o mar, e os olhos iam-se-lhe carregando de brilho.
- Tão bom - repetia.
- Sim, mas temos que ir.
Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade humilde e entristecida. Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do restaurante.
- O homem deve estar à nossa espera - disse ele. - Ainda não tens apetite?
- E tu, tens?
- Uma fome de tubarão.
- Então também eu tenho, Paulo.
- Ora essa?
- Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra.
«Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos que me cheguem, meu Deus.»
«Faço ideia, com essa mania de emagrecer... »
«Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui sozinha a moer arrelias, sem ter com quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me fazes.»
«Pois.»
«Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há complicações que te toquem. Voltas as costas e ficas positivamente nas calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?»
«Acredito, que remédio tenho eu?»
«Que remédio tenho eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.»
«Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar, a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela maresia e, cá fora, as cadeiras de verga, que o vento tombara, soterradas na areia.
- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. - Quando é das águas vivas, berra lá fora como um danado. Mas aqui, não senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.»
«A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como vai ser para me levantar. Escuta...»
«Que é?»
«Não estás a ouvir passos?»
«Passos?»
«Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é que tem razão. Noite em que não adormeça veste-se e vai dar uma volta com o marido, a qualquer lado. Acho um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar... mas, enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso, Quim, apesar de ser a tal tipa, que tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma tipa ou uma galinha.»
José Cardoso Pires, Jogos de Azar,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999 (7ª ed.).
© Instituto Camões, 2002
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