Autores Portugueses - Literatura e Poesia na Nossa Língua
A CARA DE BOI
Era um rei, que tinha três filhos. Um dia disse: – Pois, filhos! ide correr o mundo; aquele que trouxer a mulher mais formosa é que há de ficar com o meu reino.
Partiram; os dois irmãos mais velhos acharam logo duas raparigas muito formosas, com quem se casaram. Uma era filha de uma padeira e a outra de um ferreiro. O mais novo andou por muitas terras, sem encontrar mulher que lhe agradasse.
Indo um dia por um escampado, cheio de fadiga, desceu do cavalo e deitou-se a uma sombra. Deu-lhe então na vista uma casa muito alta sem porta nenhuma, e só lá bem no alto é que tinha uma janela. Esteve ali muito tempo, até que viu aparecer uma velha, que chegou ao muro da casa, bateu na parede e disse:
Arcelo! Arcelo,
Solta o teu cabelo
Cá abaixo de repente;
Quero subir imediatamente.
Foi então que ele viu desenrolar-se da janela uma trança de cabelo tão comprida, que ficou espantado com a sua beleza. A velha pegou-se a ela como se fosse uma corda e subiu para dentro de casa. Pouco depois a velha tornou a sair, e o cavaleiro tendo desejo de ver de quem seria a trança, chegou-se à parede, bateu e repetiu as palavras:
Arcelo! Arcelo,
Solta o teu cabelo
Cá abaixo de repente;
Quero subir imediatamente.
A trança desenrolou-se pela janela abaixo, e o rapaz subiu. Ficou pasmado quando viu diante de si a cara mais linda do mundo. A menina deu um grande ai de surpresa e aflição: – Vá-se embora, senhor! que pode vir minha mãe, e tem artes de lhe causar todos os males que há.
– Não vou, sem a menina vir comigo; porque eu assim ganho o reino de meu pai. E se não quiser vir, lanço-me desta janela abaixo.
Desceram ambos pela parede, e fugiram a toda a pressa no cavalo que estava folgado à sombra. Ainda não iam longe, quando ouviram uma voz: – Pára! Pára, filha cruel! Não me deixes só no mundo.
E como a menina fosse sempre fugindo com o príncipe, a velha disse-lhe: – Olha para trás, ao menos, para receberes a bênção de tua mãe.
Assim que a menina se virou para trás, ela disse-lhe: – Eu te fado, que essa cara linda que tens se torne uma cara de boi.
Coitadinha! Ficou logo como um boi.
Assim que o príncipe chegou à corte, puseram-se a rir daquela figura horrenda, sem saber como ele se tinha apaixonado por cara tão feita, que fazia fugir. O príncipe contou a sua desventura aos irmãos, mas quem é que se fiava? Estava quase a chegar o dia em que os três irmãos teriam de apresentar as suas esposas diante de toda a corte, para se assentar qual era a mais linda, e qual deles é que havia de ficar com o reino.
A rainha velha tinha muita pena do filho, e lembrou-se de fazer demorar a cerimónia, para ver se a velha com o tempo perdoava à menina e lhe restituía a sua formosura.
Disse a rainha, que queria que antes da cerimónia da corte cada uma das suas três noras lhe bordasse um lenço. A filha da padeira e a do ferreiro não sabiam bordar, mas trataram de enganar a rainha, arranjando quem lhes fizesse os bordados; a que tinha cara de boi pôs-se a chorar, e tanto chorou que lhe apareceu a velha, e disse:
– Não te rales mais; no dia em que tiveres de entregar o lenço à rainha eu cá to virei trazer.
Chegou o dia; a velha veio entregar-lhe uma noz muito pequenina. A Cara de Boi foi levá-la à rainha, dizendo que ali estava o seu lenço. A rainha quebrou a noz e ficou pasmada com a mais fina cambraia, bordada com flores, ramos e aves.
Chegou o dia de irem à corte para serem apresentadas as três noras do rei; a Cara de Boi pôs-se a chorar, a chorar, até que lhe apareceu a velha que era sua mãe:
– Não chores mais; trago-te aqui um vestido para a festa. – Desdobrou-o; era todo bordado de ouro e pedrarias; a filha vestiu-o, mas quanto o vestido era lindo, tanto ela ficava mais horrenda. E pôs-se a chorar, a chorar cada vez mais.
Quando já todos tinham entrado para a sala, faltava só ela; a velha disse-lhe: – Vai agora tu.
A filha obedeceu, mas ia muito triste por ver-se tão medonha. Quando ia pelo corredor do palácio, a mãe disse-lhe cá de longe: – Olha para trás.
E assim que a filha voltou a cara, continuou:
– Fica com a tua formosura. Mas não te esqueças de meter nas mangas todos os bocadinhos de toucinho que puderes, para me dar.
Então ela entrou na sala pelo braço do marido, e todos ficaram pasmados. A corte logo confessou que ela é que era a mais linda; e daí foram todos para a mesa do banquete. Enquanto estiveram jantando a menina não fazia senão meter bocadinhos de toucinho nas mangas do vestido; as outras duas que a viam fazer aquilo trataram de fazer o mesmo, pensando que era moda. Acabado o jantar, começaram as danças; mas a rainha ao ver o chão todo besuntado de gordura, e que a cada passo se escorregava em bocados de toucinho, perguntou quem é que fizera tamanha porcaria. As duas damas disseram que o viram fazer à princesa herdeira, e por isso fizeram o mesmo. Começou cada uma a sacudir as mangas dos vestidos, e das mangas da menina começaram a cair aljofres e diamantes misturados com flores; as outras envergonhadas botaram-se pela janela fora, pelas escadas, corridas, e a que chamavam Cara de Boi é que veio a ser a rainha, porque o rei velho entregou a coroa ao filho mais novo.
(Algarve – Faro)
In "Contos Tradicionais do Povo Português" Volume 1
Edição do Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro
Edição do Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro
Theophilo Braga
(1843-1924)
Portugal
(1843-1924)
Portugal
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